quinta-feira, outubro 22, 2009

valter hugo mãe: o apocalipse dos trabalhadores


Ela queria morrer de amor. "Porque o amor não cabia quieto no espaço tão pequeno que era o corpo de mulher." O corpo dela, mulher de Bragança, mulher-a-dias, mulher de marinheiro, roliça Maria da Graça, portuguesa típica, quarenta anos, um bocadinho mais ou um bocadinho menos, que quando não há futuro para sonhar, tanto faz a idade. Maria da Graça queria morrer - já agora, de amor -, porque só morrendo encontraria a felicidade. Ou pelo menos, paz. A felicidade e o senhor Ferreira, patrão de uma vida, "velho a quem idade não tirava o fulgor", homem "maldito" que lhe ensinou o requiem de Mozart e a beleza de Goya, a poesia de Rilke e as teorias de Bergman, "homem sem escrúpulos" que lhe escalava o corpo de cada vez que ela, reles empregada, se colocava de rabo para o ar a esfregar o chão. Parecia maldito; era bendito. Era o mais próximo que conhecia de ser feliz. Mesmo que odiasse. Ao marido, Augusto, colocava "lixívia gourmet" na sopa. Não era para o matar; era só para se vingar da dor.

Maria da Graça e Quitéria são as melhores amigas, as duas de Bragança, as duas carpideiras semi-profissionais, putas de vez em quando. Entretêm-se a falar sobre o nada que é a vida de quem na vida não tem nada para esperar que não seja trabalhar para não ter nada. Quanto mais amor de verdade. As duas vazias de sonhos, as duas ali perdidas, esquecidas por deus. Uma à espera que a morte a salve; a outra a ser salva aos bocadinhos por uma pila qualquer, descartável, esquecível. Até conhecer Andriy, ucraniano belo, 23 anos, imigrante, tão esquecido por deus como elas; como elas, tão abandonado pela vida. Ele à procura em Portugal também de uma salvação qualquer, que num país que faz uma revolução com flores nada de mal pode acontecer. Pensava ele, pensavam os pais. Encontra Quitéria. Insondáveis os caminhos do amor.

"o apocalipse dos trabalhadores", de valter hugo mãe [QuidNovi, 2008], é assim uma espécie de soco no estômago que não passa, que fica ali sempre a bater como um martelo pneumático. Também na cabeça. É uma história de aqui, de agora, a dizer-nos que se calhar mudámos muito pouco, quase nada, apesar de tudo o que mudou. É a história de quem está no purgatório à espera de saber se vai para o céu. O inferno já todos conhecem. Somos nós, e não parece.

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