Conheci o Miguel quando comecei a trabalhar num jornal que não era o meu. Passam doze anos em Dezembro. Talvez me tenha apaixonado pelo que ele escrevia antes de ter-me apaixonado por ele. Não era o que escrevia, era a forma como escrevia. Um dia, antes ainda de sermos namorados, com a arrogância imberbe de quem iniciava percurso desejando que os jornais se aproximassem dos livros, perguntei-lhe como era possível escrever daquela maneira que não era a maneira de ninguém, nem daquele jornal nem de nenhum outro, aquela maneira de escrever que me sabia para além da poesia. Ele respondeu: "Foi o Manuel Pina que me fez assim."
O Manuel Pina era então editor de Cultura no JN, o Miguel sucedê-lo-ia pouco depois. Eu viria a trabalhar com ele. Trabalhar com o Miguel era uma declaração de amor à profissão. Era missão e maratona. Era ver nitidamente páginas inteiras antes de elas estarem desenhadas, era recolher mais informação do que parecia possível verter, era pôr o coração inteiro, o sangue todo numa notícia, era reescrever tudo até ao segundo impossível, era não ter tempo para respirar, era não querer respirar para não perder tempo, era acrescentar detalhes até ao céu que era ser jornalista naquela altura. Trabalhámos juntos pouco tempo, quatro anos. Nunca mais tive um editor assim. De todas as vezes que lhe perguntei como conseguia pensar uma peça, organizá-la sem esquecer o mais ínfimo e improvável pormenor, desenhá-la na nossa cabeça ao mesmo tempo que a idealizava na dele, ele respondeu: "Foi o Manuel Pina que me fez assim."
Naqueles anos, nunca jantávamos antes da meia-noite. O Miguel era invariavelmente o último a fechar. O Manuel Pina, até Agosto, até ser internado, foi sempre o último a entregar a crónica. A crónica que traduzia o mundo "por outras palavras", que tirava máscaras a quem as usa, que colocava os pontos nos is e os dedos nas feridas, bálsamo para dor, injustiça vingada, a crónica que todos os dias me fazia ferver e fervilhar de orgulho e pensar: "É o Pina. É nosso."
Foi o Manuel Pina quem me deu o Miguel. E foi o Miguel quem me deu o Manuel Pina. Primeiro com o Anacronista, depois com a poesia, o Borges como bónus. Amor contagiado, quase devoção. Estávamos no Alentejo, em Maio do ano passado, quando soubemos que ganhara o prémio Camões. Celebrámos tanto! Comprámos os jornais todos no dia seguinte, lemos tudo em voz alta, poesia. Estávamos tão felizes.
E hoje estamos tão tristes. "Se pudéssemos falar com lágrimas", chora o Miguel. Manuel Pina foi sempre cá de casa. Entrava nas cartas de amor, nos bilhetes deixados de manhã na parede, bastião de esperança quando vacilávamos em relação à profissão, posto de socorro nas conversas sobre a eterna luta pela verdade, sopro para a coragem, escudo contra a fraqueza da desistência, certeza de que os bons ganham sempre. Era a liberdade, a humanização do nosso pequeno mundo desumanizado, era a possibilidade da construção de alguma coisa maior. Deixa-nos na altura em que mais precisamos dele. O país colonizado, a profissão a esvair-se, os jornalistas na rua, tantos sem saber se da rua sairão, greve que já era antes de se ver, nós sem sabermos até quando resistiremos, até quando continuaremos a acreditar. E agora, o pior de tudo, o mais triste de tudo, a dor sem remédio, ficámos sem ele para nos acordar. Para nos salvar. E agora, Manuel Pina?
Belo...
ResponderEliminarSorte a do Miguel :)