terça-feira, dezembro 15, 2015
segunda-feira, dezembro 14, 2015
quinta-feira, dezembro 10, 2015
Fernando Sobral: As jóias de Goa
Às vezes penso no que sentirá quem não viveu ao mesmo tempo que Manuel António Pina. No que sentirá quem não sabe o que é esperar pelo dia seguinte para se sentir vingado, redimido ou compreendido na crónica de um inatacável. Quem não sabe o que é esperar pelo poema novo de um homem vivo. Penso no que sentirá quem nunca sentiu a emoção do acaso de cruzar-se com Eugénio de Andrade na marginal, e no despudor de não conseguir retirar dele o olhar. Ah, e os livros de poemas que nunca estão na mochila quando são precisos! Penso no que sentirá quem nunca sentiu as lágrimas irromperem-lhe pela cara quando Manoel de Oliveira sacudia quem tentava ampará-lo, capaz até ao fim de tudo sozinho. No Portinho somos poucos, a cidade tem coração grande mas corpo pequeno, todos tropeçamos em todos, e todos os encontros contam. E nós, os sub-40, geração de transição para pior em tanto, somos também a geração deste infinito privilégio: o de termos sido vizinhos, no tempo e no espaço, de tantos dos nossos endeusados.
A propósito de endeusados. Nunca vi o Fernando Sobral na vida. Quisesse o destino que fosse do Porto e talvez sentisse o mesmo abalo num qualquer tropeçado acaso. Não é. Leio-o quase todos os dias no Jornal de Negócios, deixei de partilhá-lo porque sou egoísta, e não o colecciono. Coleccionei crónicas de jornais para aí até aos vinte anos. Passava tardes inteiras numa espécie de porão da universidade a fotocopiar tudo dos eleitos. Depois, a aparição compilada nas livrarias do que me tinha dado tanto trabalho a fotocopiar sabia-me sempre a facada. Por isso, desisti de compilar crónicas. E cresci, ao que parece. Deixei de ter tempo.
Seguir um cronista é como seguir uma série. Provoca vício e ressaca. Um filme pode ser a destruição de uma série. Um romance o desgosto com um cronista. Tento evitar ambos. Evitei ler "O segredo do hidroavião", não resisti ao "As jóias de Goa". Embora não aprecie especialmente policiais. "As jóias de Goa" é e não é um policial. É sobretudo um livro sobre o imaginário desse império português sempre tão insuflado e um poema sobre o que distingue portugueses e goeses, o fado e o mandó. Sobre o que nos faz e ir e ficar. Um romance sobre aquilo que somos, ainda hoje. E é, ou será, aparentemente, parte de uma trilogia. Sem surpresa, belissimamente escrito. Lê-se num sopro. Já o disse várias vezes, e repito: Fernando Sobral é o melhor cronista de sempre depois do Pina. E agora, também, um dos meus escritores eleitos.
"Quando não discutimos o passado com sinceridade, os fantasmas não desaparecem. (...) - Uma resposta suave é melhor do que uma espada ou uma pistola. - Nunca procurei desculpas. - Achas que me matavas se isso fosse útil para ti? - Claro. Que queres de mim, Yasmin? - E tu, que queres de mim? - Não sei. - Pois eu sei. Eu conheço os portugueses. Já falei com muitos. Têm desejos. Mas não sabem o que é o verdadeiro desejo. Têm saudades. Nascidas do inferno e alimentadas pela esperança. O passado continua a ser a vossa maior prisão. Mas gosto de vocês. São um povo misterioso. Perderam-se no mundo. São como os indianos. São o povo das partidas. Como um pássaro melancólico perdido no mundo. São seres sempre em fuga. Como tu. Passas a vida a fugir. - Fugir? - Sim. Por isso te queria conhecer. Lembras-me os tigres. - Um tigre? Porquê? - É a tua forma de te moveres na vida. De seres silencioso, até ao momento certo em que tens de actuar."
As Jóias de Goa, Fernando Sobral
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