É infalível: Nuno Cardoso nunca desilude. Mesmo quando depois de tantas encenações perfeitas, a expectativa não pode estar senão no patamar mais elevado. "Jardim zoológico de cristal", do norte-americano Tennessee Williams, é um texto dos anos 40, a atravessar a Grande Depressão, mas basta conhecer o trabalho do encenador para saber que em algum momento ele havia de conseguir transportar aquela peça para a actualidade. Foi o que aconteceu.
Olha-se para o cenário, ainda inanimado, de Fernando Ribeiro, os actores ainda em pause, e fixamo-nos logo em dois detalhes que hão-de ser a chave para o que virá depois. A peça desenvolve-se toda dentro de uma espécie de aquário ou de montra, cujos vidros estão quebrados: o atalho para memória. E como ela pode ser adulterada com o tempo. Às vezes, para espetar facas; outras vezes, para apaziguar de um presente que está longe de ser o que se imaginou. Lá dentro, uma mesa pequena, cheia de animaizinhos pequenos, frágeis, de cristal. Estão ali a dizer-nos que a sua vulnerabilidade imita apenas, senão mais, a de quem os colecciona. Todos os personagens estão presos num contexto que gostavam de não ter.
Laura é talvez a maior personificação dessa fragilidade (e como Micaela Cardoso - sempre, sempre, sempre incrível! - consegue levar-nos às lágrimas!...). A rapariga superlativamente tímida, no limiar da perturbação, a rapariga inadaptada, que desistiu da escola, do curso de dactilografia, e mais que houvesse para desistir se não se tivesse enclausurado em casa (às vezes na floresta, às vezes nos museus...) a tratar dos seus animais sem vida e dos seus discos riscados. A rapariga que se fosse uma-vezes-mil em vez de ser uma-vezes-uma estaria a receber rapazes em catadupa para escolher aquele com quem deveria casar. Laura tem uma deficiência na perna, é coxa, multiplicou na cabeça essa deficiência por cem, e isso impediu-a de ser. É o fardo da família. Da mãe. É o unicórnio.
A mãe, Amanda Wingfield (eu que quase só tinha visto a Maria do Céu Ribeiro em monógos ou em peças a duas vozes, fiquei siderada) é uma mulher à beira de um ataque de nervos. Abandonada pelo marido há 16 anos, sustentada pelo filho contrariado, aterrorizada com o futuro de uma filha que ameaça não trabalhar nem casar. De vez em quando vai lá atrás, ao passado, à memória, como quem toma uma aspirina para suportar o peso do presente. Ela e os bailes, ela a sua interminável fila de pretendentes, ela e a sua imensa felicidade. Ela a oscilar entre o desespero e a esperança, entre a luta e a desistência. O filho, Tom, homem da casa, sabe-lhe as frases de cor. Evita-as: às histórias repetidas até à exaustão e à mãe. Vai ao cinema (?) todas as noites; todos os dias para a fábrica. É ele o narrador também. E também ele tem as asas cortadas.
Um dia, Tom cede, aceita levar lá a casa um colega da fábrica para conhecer Laura. O colega é, de todos os homens do planeta, o único por quem, um dia, em segredo, no liceu, Laura esteve apaixonada. Jim O'Connor, o rapaz mais popular da escola, tão popular que só por uma terrível rasteira da vida o futuro poderia apresentar-se naquele tão pouco glamouroso presente. Podia ter corrido tudo mal. Correu tudo bem. Mas já era se calhar tarde... "A maior distância entre dois lugares é o tempo".
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