Escusado tentar encaixar "Eles eram muitos cavalos" do brasileiro Luiz Ruffato numa qualquer categoria da literatura. Se fossemos mesmo obrigados a fazê-lo, diríamos apenas que é um longo poema. Ou 68 micro-poemas. Mas com regras próprias. Para ler em voz alta. E em loop. Um livro que desmonta tudo o que sabemos sobre livros e tudo o que não sabemos sobre as entranhas das cidades. Sobretudo, tudo o que nem sequer sabemos que é possível ver. Ou sabemos, mas não temos capacidade para.
Fixar o dia 9 de Maio do ano 2000 em S. Paulo. Era uma terça-feira e o céu estava nublado. E o mundo cabe inteiro dentro desse dia. O pai orgulhoso, o filho que tem um mapa na cabeça e o rapaz desempregado. A velha esbugalhada, avó. O garoto craque em matemática, jesuscristinho. O rato que observa os outros ratos na imundície. A mulher que o marido de pantufas nunca ouve. A vizinhança sempre atenta às discussões alheias. A tia da horta e o índio que dança no asfalto. A mulher que prometeu nunca mais beber e os amantes que poderiam ter sido grandes amigos. A princesa de 16 anos e a outra que é vaca, puta, cadela, desgraçada. O segurança negro espadaúdo e o evangelista à procura da inspiração divina. O McDonalds, claro, o telemóvel, o taxista, e obviamente o paraíso. O velho, cuja neta é boa, mas a adolescência... E isto tudo a velocidade de cruzeiro. Mil e muitos quilómetros/hora dentro da história que cada pessoa é.
É quase tão escusado catalogar "Eles eram muitos cavalos" como procurá-lo. Não há Fnac que nos valha. Encontrei um exemplar em Torres Vedras, na Livraria Livro do Dia, cujo proprietário, também poeta, fez a imensa gentileza de me enviar. De resto, é dele o melhor texto sobre a "experiência a não perder" desta leitura. Escreve ele: "Esta é uma grafia do tempo em que se escreviam cartas, um tempo em que dizer São Paulo, Lisboa ou Maputo, significava aos nossos cérebros uma secretária onde alguém se houvera sentado (...). Imagine-se a experiência de um filme de uma vida a passar-nos diante dos olhos, em fast forward - assim será aquilo por que Luiz Ruffato nos tenta fazer passar, uma leitura onde nenhum copo de água ou garrafa de oxigénio nos poderá aliviar, porque este livro lê-se com a cabeça e não com os olhos, com os movimentos e não com as palavras."
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