Mesmo tal como estava, havia nele uma aura luminosa a querer dizer-nos que a sua vida fora cumulativa: um enriquecimento caldeado na dor, no sofrimento e numa infinita esperança. Tinham-nos ensinado a esperar por outros amanhãs, e existíamos entre a semiologia e a revolução. Quem não viveu essas épocas não entenderá nunca o feitiço exercido pela História sobre nós. Mas a voragem dos tempos açoita as convicções. Uns bifurcaram-se, outros ajuizaram que o destino é um arcanjo cego. Carlos Paredes pertencia a outra estirpe: não desistiu, não abdicou, não traiu, não abjurou. Carlos Paredes morreu sem nunca perder a latitude do seu tempo, nimbado dessa natureza criadora e plural, decisiva e incitante que lapidou os melhores da sua geração. Ele, porém, era um génio. Sirvo-me do adjectivo atendendo ao rigor do seu exacto significado. Um génio que conhecia muito bem o peso do seu talento, sem nunca saber ou querer usar o poder daí decorrente.
Os persas antigos diziam que os abençoados dos deuses possuíam mãos celestes: em tudo quanto tocavam permanecia uma luz emanada do firmamento. E esses abençoados eram gigantes solitários, poderosos e pacíficos, decisivos e íntegros. Carlos Paredes emoldurava-se nessa lindíssima fábula. Quando tocava, os dedos percorriam as cordas com a volúpia de um demiurgo, com a sensualidade de quem afaga um corpo de mulher, com a delicadeza do respeito e a grandeza de uma palpitação infinita que lhe ficara da infância. A guitarra do Paredes. A guitarra do Paredes foi, amiúde, a voz dos homens a subir ao céu, e o encontro dos deuses distraídos com a tristeza do chão português. “Verdes Anos” é um dos mais plangentes poemas sobre as nossas emoções antigas: a derrota, a dor, o espanto de sermos jovens e não sabermos se estaríamos, em adultos, à altura dos nossos malogros. E também a ternura, a partilha, o gregarismo que une os homens na adversidade, e aquela voz ciciada a dizer-nos que resistir é outra forma soberana de combater.
A guitarra do Paredes foi o Portugal que jamais se calou, mesmo na opressão, mesmo nas masmorras, mesmo no opróbrio e na violência do fascismo. Ainda que não estivesse com as mãos na guitarra, Carlos Paredes tocava sempre, num constante confronto experimental que punha em causa a verdade estabelecida, os padrões impostos, o conhecimento definitivo e dogmático. O País não mereceu o seu imenso génio, a sua inabalável integridade. O País matou-o várias vezes com a omissão, a ignorância, o ostracismo deliberado. Luís Cília lapidou uma frase terrível: “Dizem que o Paredes morreu de insuficiência renal. O Paredes morreu da insuficiência mental portuguesa.”Há muitos anos, em Frankfurt, num festival onde a Europa “desenvolvida” apresentava os seus trunfos maiores: a França, a liberdade; a Alemanha, a organização; o Luxemburgo, o aço; eis que o cantor Vitorino, em palco, passou da experiência dos outros para a consciência momentânea de quem éramos: “Senhoras e senhores: Portugal. Carlos Paredes!” Ao lado de Fernando Alvim, parceiro e cúmplice, entrou quase nos bicos dos pés, ligeiramente curvo, sorrindo um sorriso embaraçado. Depois, pegou na guitarra e começou a fazer aquilo que fazia melhor do que qualquer outra criatura na Terra.
A audiência, a princípio surpreendida, mergulhou, estupefacta, em denso silêncio, envolvida na bruxaria daqueles sons, o homem como império dos sentimentos dentro do império das emoções, os sons como rezas, súplicas, hosanas, júbilos, aleluias, nunca por aquela gente escutados, e a voz do Vitorino: “Portugal! Isto é Portugal!”Este artista incomum foi miseravelmente perseguido, antes e depois de Abril, por ser comunista, e por nunca ter abdicado das convicções que lhe moldaram a argila moral desde a adolescência. Foi Maldonado Gonelha, quando ministro da Saúde de um governo do PS, quem o tirou do buraco onde trabalhava, como arquivista de radiografias, no Hospital de São José. Gonelha não dissimulou a indignação: “Como é possível fazerem isto a um artista desta grandeza?” Modesto, discreto, Carlos Paredes disse: “As coisas são assim. E eu preciso de ganhar a vida.”Esteve em todas, o Paredes. Era só pedir-lhe, e lá ia ele, sem pedir remuneração, sem demandar a glória, esbanjando o formidável talento em festas nas quais se soletrava a solidariedade e se exigia a presença como uma obrigação.
Creio que nunca teve retrato na primeira página de jornal. Vai ter agora, com o hipócrita desvelo de quem jamais por ele terçou armas, de muitos dos que sequer escreveram o seu nome com admiração e respeito.Lá ia ele, guitarra nas mãos, uma lírica muito pessoal, um cancioneiro de liberdade, um cântico profano e elegíaco saídos daquelas mãos incomparáveis. Daquelas mãos celestes.
[Por Baptista-Bastos, publicado no Jornal de Negócios a 27 de Julho de 2004, na morte de Carlos Paredes (1925-2004). Recordação roubada a Pedro Santos Guerreiro.]