Tu eras o rapaz mais bonito da universidade. Soube-o mal te vi. Magro, moreníssimo, os olhos rasgados, cheios de luz, lindo até onde não é possível ser-se. E aparentemente tão alheado de tudo, uma aura de magia, de mistério à tua volta. E cheiravas tão bem. Ninguém cheirava como tu, usavas um perfume que ainda não tinha chegado a Portugal. E esse odor sabe-me sempre a ti, ainda hoje.
Lembro-me da primeira vez que te vi, já passaram quase 15 anos: tu dentro de uma t-shirt laranja, a tua pele a contrastar com a cor do algodão, tu ali sentado, sozinho, naquele degrau do edifício lateral, em frente à cantina ou ao quiosque ou lá o que era aquilo. Irremediável, instantaneamente rendida a ti, quem quer que tu fosses. Mas senti que te perdi logo ali. Porque lembro-me de te procurar, procurar, procurar e nunca saber onde estavas, de que curso eras, de onde vinhas, onde paravas. Nunca-nunca sabia de ti. Até que comecei a tropeçar em ti, aqui e ali. Podia lá imaginar que não era por acaso! Os olhares a cruzarem-se, os olhares a não se desviarem, os olhares a fixarem-se.
Lembro-me da primeira vez que falámos, numa sexta-feira ao fim da tarde, antes de cada um de nós apanhar o autocarro para o fim-de-semana. Não me lembro o que dissemos, mas lembro-me da felicidade desse dia e, claro, do teu cheiro. Não havia telemóveis, nem sms, nem internet, não havia nada para trocar. Um dia, muitos anos depois, comprei um frasco daquele perfume por tua causa. Ainda o tenho, está intacto. É uma espécie de santuário onde estás. Onde está o que ficou de ti. O que ficou de ti para mim.
Lembro-me de estar em tua casa, que era também a casa daquele fulano meio esquisito que tinha um cão enorme e que fazia plantação de cogumelos. Lembro-me do teu quarto. De uma noite inteira. De te dizer que a tua barriga parecia uma tablete de chocolate. E parecia mesmo. E lembro-me das tardes passadas em minha casa a estudar, da tua paciência, da tua bondade comigo. Da tua gargalhada. Podíamos ter ficado ali para sempre. Mas talvez eu ainda não soubesse o que era querer uma coisa para sempre. E um dia foste embora. Sem te despedires. Sem avisar. Nesse dia, perdi-te mesmo. Não sei precisar como ou quando ou de que forma. Nem sei precisar o dia em que dei conta. Talvez não tenha sido logo. Mas quando percebi, inquiri todos os teus amigos vezes e vezes sem conta. Mas ninguém parecia saber muito bem onde estavas. Ou não queriam dizer-me. No fundo, todos achavam que eu tinha sido má contigo. Não sei se fui. Mas talvez por isso, por teres ido embora sem avisar, fiquei sempre com a sensação de que, desde que te conheci, passei a vida inteira a procurar-te. E, às vezes, a procurar-te da forma mais desonesta, que era procurar-te nos outros. Nunca deixei de te procurar, nem mesmo quando não fazia a mais pequena ideia de onde estavas, ou depois, quando já sabia vagamente que tinhas abandonado o curso e o país.
Depois, a minha memória de ti fica mais difusa, dispersa, enevoada. É pouco cronológica, aparece em fragmentos: de cheiro, de voz, de bilhetes, de momentos fugazes.... Associo tanto a ti, desde sempre, a expressão (que nem sequer é uma expressão) "estrela cadente", que parece que não só a inventaste, como inventaste as próprias estrelas cadentes. Se calhar porque fomos sempre apenas isso. Uma estrela cadente. Guardo um bilhete teu onde me falas disso, onde me falas do rasto de um cometa. Passámos um pelo outro a correr. Cruzámo-nos quantas vezes, sabes? A minha memória de ti tem sobretudo a ver com a minha procura de ti. No Insólito, no Deslize, naquele bar ao lado do BA, ou no café da frente, ou no bar no CP2 ou sei lá eu! A minha procura de ti numa altura em que já não era possível encontrar-te. Um dia, numas férias de Natal, decidi escrever uma carta para casa da tua mãe. Imaginava que, mais cedo ou mais tarde, acabarias por lê-la. Não só a leste como me respondeste logo a seguir. Quase não conseguia acreditar que ainda te lembravas de mim. Que te lembravas de tudo. Que tinhas estado sempre lá, ao pé mim, no coração. Fiquei mais feliz do que saberia agora explicar-te. Ficámos amigos, claro. Amigos de verdade.
Mas nunca mais de vi. E se eu te procurei!... Sobretudo nos teus amigos. Sinistro caminho de compensação. Até tropeçar em ti, em 2001, já numa outra cidade, num centro comercial, o mais improvável dos locais para um reencontro. Tu costumavas dizer que eu era "a menina dos cabelos a arder". E naquele dia, por um momento em que tudo me pareceu extraordinariamente estranho e confuso, eu quis poder ser o que nunca fui: a tua menina. Dos cabelos a arder. Ah, mas o tempo... E a certeza, mais clara do que antes, de que nunca soube quem és de verdade. Muito menos tu quem eu sou realmente. E, apesar disso, a certeza infinitamente maior de que vou gostar sempre, sempre, sempre de ti. Sejas tu quem fores. Mesmo. Como quando tinha 17 anos. Como quando te vi pela primeira vez. Como se o tempo tivesse parado aí. Porque definitivamente não é o que sabemos das pessoas que nos faz gostar mais ou menos delas. Sobretudo não é a vida partilhada a par e passo. É o que delas se torna tatuagem, cicatriz, marca inesquecível. Insubstituível.
Voltámos a falar no ano passado. Por telefone. A tua voz igualzinha, aquele teu irresistível sotaque absolutamente igual. Mas nem aí nos vimos. Combinámos um pequeno-almoço, mas eu achava que tu não ias acordar, que não querias acordar. E por isso também eu não acordei. E quando me ligaste a perguntar se eu me tinha esquecido, já era tarde para sair de casa e ir ter contigo. Tu tinhas um comboio ou um avião para apanhar. Um de nós nunca chegaria a tempo. Depois, na noite em que o mundo mudou, nós estávamos lá os dois, os dois no Grand Parq, em Chicago, nós e mais uns largos milhares a aplaudir o Obama, eu sei. Mas não nos vimos. Não tive coragem de te ligar.
E agora tu reapareces assim do nada, a dizer-me que vamos ser vizinhos por um ano, talvez dois ou mais. Mas não vamos. Já não vamos. Ainda não é desta que a minha cidade voltará a ser a tua. Embora eu vá continuar a procurar-te. E a guardar-te. Sempre.
Sem comentários:
Enviar um comentário