A cartada definitiva haveria de ser jogada no último dia, o último de três improváveis dias passados a voar. Literalmente. “Fiz-te uma pergunta mas não precisas responder. O caso é sério, não é?” Retórico, Wayne Coyne, vocalista dos efabulatórios Flaming Lips, acabara de invadir, indiscreto, uma das 20 mil hirtas histórias da oitava edição do Festival de Paredes de Coura, no bucólico Minho, na fronteira do milénio. E sem dó nem piedade, sintetizara-a, aos gritos, esborrachando um coração quase vivo na cara, enquanto a desmascarava: “Digam a quem está à espera de um super-homem que ele ainda não desceu, mas vem. Esta é uma boa altura para ele sair do sol em direcção ao céu”. Prognóstico testemunhado num concerto onde o adjectivo “inesquecível” nunca viria a morrer, apesar da overdose.
(Aviso prévio à navegação: É uma história de amor. E de fadas. De teletubbies e balões. E de estrelas cadentes consumidas a meio da noite como uma droga dura. E de tudo o que fará sempre daquele festival, como haveria ser escrito, “um santuário sem Deus, onde o sagrado sorri à passagem do profano. Um local onde a crença vive em eterna suspensão e onde os devotos sabem que a homilia não dura para sempre”.) Não durou.
A coxa de frango, gordurosa, alarvemente sacudida com mãos de chocolate e dentes alvos, era só uma das inúmeras calorias espalhadas pela mesa de plástico espetada no chão de terra, que a concentração do olhar dele não chegaria a deglutir na antecâmara do concerto. Lentamente, ela aproximou-se como quem pede desculpa por trilhar o soalho crocante de um salão onde decorre uma cerimónia ininterrompível. Avisado pela sombra assustada de um corpo escondido dentro de uma túnica branca, ele apressou-se a empurrar o galináceo de churrasco com um golo de Super Bock e apresentou-se. Ela também. Obrigados a trabalhar juntos no festival, haveriam de confessar mais tarde os inúmeros preconceitos Norte-Sul que hospedavam na mala para disparar à testa um do outro ao menor indício de contrariedade. Embora não tivesse havido contrariedade. Até os Coldplay, vaiados pela multidão, lhes pareceram "ter cumprido à risca o que deles se esperava." O Público foi o único jornal a prever que eles seriam "os novos meninos bonitos da pop-britânica". As 20 mil pessoas que cuspiram garrafas de plástico para o palco haveriam de concordar quatro anos mais tarde.
Alienado, o promotor do evento, parco em estadias, perguntava, esperançado, ainda no primeiro dia, noite: “São namorados, não são?” Tinham 72 horas para se entenderem ou desentenderem. Não tinha que ser para sempre. “Não”, apressaram-se a responder, sintonizados. “O que é esta luz a brilhar à tua volta? Deriva de alguma química? Se é natural é porque alguma coisa dentro de ti terá chegado. O amor é o lugar que tu desenhas.”, insistia Coyne, cúmplice, visionário, afogado em milhares de confetis, erguendo, no meio do absolutamente mágico e pouco conhecido "Soft Bulletin", uma versão de cristal de "Somewhere over the rainbow" de “O feiticeiro de Oz” para atenuar o frio daquela noite.
"Se vocês casarem, eu quero ser o padrinho", sorria o promotor do melhor festival de Verão português. Se eles tivessem casado, ele teria sido o padrinho. Mas o último dia do festival seria apenas o princípio de uma viagem da qual não acreditavam ser possível regressar. A menos que um dia se resignassem e acreditassem que tudo não passara de um sonho. O conto só seria de fadas se fosse para sempre?
Teremos sempre Flaming lips.
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