“Noites brancas” é, de todos os livros de Dostoievsky, o único que é romântico. Uma historia de amor contada em quatro noites de Primavera, em S. Petersburgo. Uma história de amor e solidão entre um sonhador - e não há pior condenação na vida do que ser-se sonhador, daí estarmos perante um herói proscrito - e Nástenka, menina que, na quase infância dos 15 anos, sem pai nem mãe, ficou presa por um alfinete ao avental da avó cega, castigo que a impedia de repetir as traquinices da idade. Esta novela do escritor russo - a última antes de ir para a prisão - é de uma beleza tal, que é difícil imaginar qualquer tipo de acção sobre ela. Ainda por cima, este sonhador faz tanto lembrar K. Maurício de "A morte do palhaço", de Raul Brandão (embora este escrito muito mais tarde, 105 anos depois), que essa associação faz elevar a fasquia até ao limite da mais absoluta intolerância diante de qualquer exercício sobre o texto.
E apesar disto, a companhia portuense Chão Concreto ousou arriscar a sua primeira produção com ele. E ousou despir o cenário de qualquer adereço que tivesse a obviamente estéril pretensão de nos remeter para aquela "noite divina", para aquele "céu estrelado e límpido" que no colocaria diante da pergunta: "será possivel viver sob este céu gente zangada e injusta?" Um banco velho de jardim é tudo. Mais ainda, ousou colocar dois actores (Ivo Bastos e Nuno Preto) em palco em vez de um actor e uma actriz. E assim, de repente, quando aquilo começa, quase pensámos: isto é um salto para o abismo, um arma apontada em direcção ao texto, não estamos preparados para ver este texto ser assassinado. Mas ainda não terminámos o pensamento e já nos demos conta da injustiça.
Aos primeiros minutos do monólogo do sonhador, o sonhador na pele do seu pior inimigo, porque nada é mais violento do que sonhar, somos engolidos por ele. Não há actores em palco, não há uma farsa, há aquela história inteira, fidelíssima, de um homem que de tanto sonhar se esqueceu de viver, aquele homem a dar a mão com força àquela rapariga que chorava à chuva, aquele homem a amá-la no silêncio, com medo de a ferir com tanta timidez, com qualquer palavra fora do lugar, aquele homem a despejar palavras em catadupa, umas atrás das outras, como se o mundo fosse acabar amanhã. Ou dali a quatro noites. E quando Nástenka aparece, ela ali no corpo de um homem, ela ali também a contar sua história, a sua dor pelo noivo que não voltou, ela cheia de trejeitos de menina, ela também cheia de sonhos, de vontade de esperar, , julgávamos que já não era possível uma rendição maior. Mas talvez fosse. Era. A felicidade, o amor, aquilo de que um já tinha desistido e o outro ainda esperava, estava ali. Como é possível não ver?
Há textos que, para sobreviverem, têm que ser tratados com pinças. É o caso. O diálogo (ou os dois monólogos) de Noites Brancas é um dos mais bonitos da história da literatura. E ali ele é tão bem tratado que quase dá vontade de, no fim, abraçar os actores. A peça estreou ontem. E vale mesmo a pena vê-la. "Um minuto inteiro de felicidade! Será pouco, mesmo que tenha de dar para toda a vida de um homem?..."
Encenação: Rodrigo Santos
Interpretação: Ivo Bastos e Nuno Preto
Desenho de Luz: Pedro Vieira de Carvalho
Cenografia: Ricardo Preto
Figurinos: Catarina Marques
Produção Executiva: Marta Lima
De18 a 29 de Novembro, às 21:45
Sala-Estúdio Latino , no Teatro Sá da Bandeira
21.45 horas. Até dia 29.
De18 a 29 de Novembro, às 21:45
Sala-Estúdio Latino , no Teatro Sá da Bandeira
21.45 horas. Até dia 29.
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