[Olivia Bee]
Não tinhas medo de morar paredes meias com o cemitério. Desde que me lembro de ti, lembro-me de ti sentado na rede branca presa por cordas às árvores do pátio de tua casa. Ficavas ali a balouçar, também nos sonhos, a rir, virado para as campas. Nunca pareceste uma criança. As coisas que dizias, a forma como as dizias, parecia que tinhas nascido ensinado de coisas que nunca saberíamos aprender. Às vezes, levantavas-te da rede e ias falar com os mortos. Mortos que, antes o serem, nunca conheceste. E lias as dedicatórias. E trocavas a água às flores, mesmo quando eram de plástico. Passeavas pelo recinto vedado a grades de ferro, pisavas aquela terra amarela que se cola à sola dos sapatos mesmo quando está seca, contornavas as pedras de mármore com a alegria de quem viaja por um jardim que não enterra corpos, encerra segredos. Fazias as contas desde a data do falecimento de cada defunto onde estacionavas até ao momento presente. E tentavas encenar o que aquela pessoa faria se ainda fosse viva. Tentavas imaginar de que forma aquela perda havia influenciado a vida dos que ficaram. Quando tropeçavas numa morte muito antiga, mas ainda cheia de flores novas, comovias-te. Quase choravas por uma dor que não conhecias, que não era tua, mas que supunhas que havia de ser grande. Grandemente insuportável. Nunca ninguém sobrevive se não esquecer.
Quando estavas triste, ias para lá, para o cemitério, mais ou menos às claras, mais ou menos às escondidas. Quem poderia entender um rapaz que em vez de jogar futebol como os outros meninos gostava de passear no universo dos mortos? Tu gostavas, mas também não eras capaz de explicar porquê. Achavas que cada morto era uma espécie de anjo pousado nas oliveiras e que cada um deles te conseguia ver e ouvir. E entender. E talvez até proteger.
Quando cresceste, esse teu ritual não mudou muito. A única coisa que mudou foi que passaste a ter as tuas próprias pessoas alojadas em vários cemitérios. Passaste a sentir a dor que antes só imaginavas. Não era muito diferente, dizias. Era só mais epidérmica. Era a tua. Perdeste muita gente em muito pouco tempo. E sentiste muitas vezes saudades dos tempos em que nos teus passeios pelos cemitérios só havia gente que para ti era anónima. Agora, estavam ali a primeira mulher que julgaste amar de verdade, o amigo que não era o melhor mas de quem gostavas como se fosse, os avós todos. E o teu pai. Gente suficiente para teres perdido, se alguma vez o tiveste, o medo de morrer.
Elogiavas o suicídio dia-sim, dia-não. Dizias que o grande bálsamo da vida é a possibilidade da morte. O saber que podias acabar com tudo no momento em que quisesses, no momento em que não fosse capaz de continuar. Mas nunca te suicidaste. Nunca sequer tentaste verdadeiramente. Mas sempre disseste, mesmo quando a frase já não tinha a doçura dramática da adolescência, que havias de ir embora cedo. Dizias como se acreditasses realmente nisso. Não sei se acreditavas. Acho que só dizias isso porque querias que o destino te pregasse uma partida, obrigando-te a morrer velho e decrépito. Não pregou, o destino. A partida.
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