Há qualquer coisa em Agualusa que me impede de saber se a imaginação dele é realmente prodigiosa ou se tem apenas um prodigioso arquivo de lendas e histórias ouvidas, saberá ele onde, para derramar com invulgar talento nas suas próprias histórias. Seja como for, "Barroco Tropical", o seu mais recente romance - excessivo em quase tudo: no número absurdo de personagens absurdas, de micro histórias, de esoterismo (anjos também, um com asas pretas: lindo!), de surrealismo, de parêntesis -, é para ler com uma bomba-relógio no coração, em ânsias. Ânsia de chegar ao fim e desvendar porque raio aquela mulher, Núbia de Matos, "puta e pura", cai do céu para se estatelar morta no chão. E não só.
Bartolomeu Falcato, personagem principal do livro, também escritor, é praticamente o alterego de Agualusa. Crítico feroz de Angola, tem com ela uma relação de amor-ódio. E o país, que é seu, retribui com perseguição - à liberdade, claro! -, com um ódio que foi esmorecendo à medida que ele foi ganhando popularidade. No livro, Luanda está à frente do nosso tempo, em 2020, mas continua muito semelhante ao que dela julgamos saber hoje, o que de alguma forma denuncia a pouca fé do escritor no futuro: "Estamos no século XXI. Estamos lá muito atrás. Estamos mergulhados na luz. Estamos afundados no obscurantismo e na miséria. Somos incrivelmente ricos. Produzimos metade dos diamantes vendidos no mundo. Temos ouro, cobre, minerais raros, florestas por explorar e água que não acaba mais. Morremos de fome, de malária, de cólera, de diarreia, de doença do sono, de vírus vindos do futuro, uns, e outros de um passado sem nome." Apesar disto, e de um ou outro apontamento, ficamos a saber menos do país do que eu inicialmente tinha imaginado.
Sendo ele, Bartololeu, o narrador, não é, no entanto, ele, o responsável pelos melhores momentos do livro. É Kianda, sua amante , "colecção de personalidades", mulher que canta "como quem morre ou como quem mata", "estrela que arde", que "vende a tristeza como os políticos vendem a prosperidade". Personagem completíssima, arrasadora, viciante, que a dada altura diz: "Acontece-me, quando estou quase a adormecer, naquele território de fronteira em que ainda sabemos quem somos, ou julgamos saber, mas em que já não conseguimos abrir os olhos, acontece-me sonhar que voltei a ser uma pessoa, e torno a experimentar sentimentos e a rir e a chorar. Sonho que amo, e que sou amada. Sinto o assombro e a alegria dos amantes correspondidos. Sinto o assombro e a alegria dos amantes correspondidos. (...) Mesmo acordada ainda há momentos em que volto a ser uma pessoa. Vivo a intervalos. Amo a intervalos. Amo em clarões. Amo como quem desperta, e depois retorno à cegueira do sono." Como não querer saber o que pode acontecer a esta mulher? E ao que ela faz ao amor?
Há ainda outros personagens absolutamente deliciosos, como o Rato Mickey, homem de cara desfigurada, ou os irmãos gémeos, anões e estilistas, Jacó e Esau. O livro é tão bom que cada personagem valia um livro autónomo. E é tão bom, independentemente do fio condutor principal, que o meu "Barroco tropical" acabou todo sublinhado. Apetecia-me escrever aqui tudo o que sublinhei, mas fico pela pueril diferença entre a alegria e a felicidade.
"Há quem confunda a alegria com a felicidade. A alegria não se parece com a felicidade, a não ser na medida em que um mar agitado se parece com um mar plácido. A água é a mesma, apenas isso. A alegria resulta de um entorpecimento do espírito, a felicidade de uma iluminação momentânea. O álcool pode levar-nos à alegria - ou um cigarro de liamba, ou um novo amor - porque nos obscurece temporariamente a inteligência. A alegria pode, pois, ser burra. A felicidade é outra coisa. Não ri às gargalhadas. Não se anuncia com fogo de artifício. Não faz estremecer estádios. Raras são as vezes em que nos apercebemos da felicidade no instante em que somos felizes."
Simplesmente maravilhoso esse escritor. Quero lê-lo!!! Urgentemente!!! Abraços,
ResponderEliminarAcabei de ler o livro recentemente. E o meu sentimento sobre o mesmo está descrito no seu comentário. Partilho o assombro de onde lhe vêm as histórias, a vontade de citar o livro inteiro, o sentimento de excessivo e, ainda assim, certo das pesonagens e historias. E a minha citação de eleição também é a da alegria e felicidade! (reli-a vezes sem conta e, a cada vez que a leio, surpreende-me mais ainda.)
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