sexta-feira, setembro 18, 2009

Finalmente, uma casa para as histórias de Paula Rego


"Tu és uma inconsciente", gritava-lhe a mãe. "Ó Maria Paula", insistia, ampliando ênfase e volume, "tu és uma inconsciente. Fazes as coisas e depois ficas toda aflita". Ela, a Maria Paula, criança inquieta, com um mundo maior dentro da cabeça do que fora dela, embaraçada, sentia-se a diminuir de tamanho, qual Alice no país das maravilhas a encolher para entrar na porta enigmática do jardim mágico. "Tinha medo", diz a juntar as palmas das mãos, os olhos pendurados no ar. "Ai, Jesus, tinha tanto medo. Medo de tudo". E tinha oito anos. Hoje tem 69. O tempo levou-lhe muita coisa. "O medo? Já não tenho tanto", confessa, aliviada. "Mas ainda existe. Agora é mais medo de coisas concretas. Medo dos ataques, das pessoas drogadas, que não fazem mal senão a si próprias, mas assustam. Medo de voltar para casa à noite sozinha."

Maria Paula é Paula Rego. Provocadora incansável. Perturbada e perturbadora. Pintora da solidão e do desespero, da frustração e do desejo, da liberdade e do encarceramento. Da melancolia. Da infância atravessada pela maturidade. Influencida pelo surrealismo e, de certa forma, pelo dadaísmo, ela pinta o pecado que imagina, o arrependimento, o purgatório, a moral e a falta dela. Em figuras ambíguas, meio humanas, meio animais, meio bonecos, meio coisas que só ela saberá, denuncia o país de que se lembra quando era ainda demasiado pequena. O Portugal da mulher submissa, manipulada, da mulher sem norte, da mulher dona de casa. E, ao mesmo tempo, da mulher erótica, misteriosa, inabalável. Constrói e destrói a História numa dialéctica motorizada pela imaginação, numa encruzilhada de metáforas para as quais só ela conhecerá a chave exacta. É a voz de quem não teve voz. A voz da consciência e da transgressão que, não raras vezes, emerge da força sexual das suas personagens. Paula Rego é um coelho. É uma formiga-rabiga. É a mulher-cão que rasga as convenções e explode em narrativas densas, carregadas de tudo menos inocência.

Continua aqui.

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