domingo, dezembro 26, 2004

Fernando Nobre


"Índice de pobreza é vergonha nacional"

"Vivo entre a grande satisfação e a grande frustração", confessa Fernando Nobre, o especialista em Medicina Geral e Urologia que, há 20 anos, trocou o hospital de Bruxelas para fundar a Assistência Médica Internacional (AMI), em Portugal. Acredita que qualquer missão humanitária é justificada - e participou em mais de 200... -, nem que seja para salvar uma só vida. Lamenta ainda a pobreza que ainda se vive em território nacional. "Não é a falta de dinheiro que faz com que as coisas não se resolvam, é a falta de vontade política na resolução das grandes causas", acusa. Ontem, no Porto, lançou o livro "Viagens contra a indiferença", o relato de algumas missões, mas também um documento que poderá levar os filhos a perdoarem-lhe a ausência: "Espero que entendam que estive a tratar meninos como eles".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 25 de Dezembro de 2004)

"Viagens contra a indiferença" associa-se facilmente aos "Diários de Che Guevara", recentemente adaptado ao cinema...
No último diário que escrevi, conto que passei por muitos sítios onde o Che passou antes de mim. Quem visitou o Equador, as favelas de Caracas, a miséria dos índios da Bolívia ou de Chiapas, compreende a opção que o Che fez. Não li os seus diários, mas os meus são gritos de alma, protestos, constatações. Tem componentes etnográficas e sociológicas, mas revela sobretudo os meus pensamentos, dúvidas, angústias.

No caso de Che, a viagem descrita nos livros esteve na origem da opção que tomou.
A vida de Che foi despertada pela viagem que fez enquanto jovem médico, tomando conhecimento de uma miséria que, como elemento da burguesia argentina, não vislumbrava. Lanço os meus gritos após 25 anos de constatações diversas, que fazem com que não me queira acomodar e prefira continuar a pugnar valores que devem ser defendidos. No dia em que a minha mulher foi ver o filme do Che, que não vi até hoje, escrevi que nunca iria saber se teria feito a mesma opção que ele, forçado a optar entre a bata de médico e a caixa de munições.

Mas também fez uma opção...
A partir do momento em que comecei a fazer missões humanitárias, fui-me desligando da carreira universitária e comecei a seguir a via de médico de terreno. Talvez tenha sido essa a minha opção de vida. Quando comecei a colaborar com os Médicos sem Fronteiras e, mais tarde, ao criar a AMI, nunca imaginei que essa orientação viesse a tomar completamente conta da minha vida. Achava que iria conseguir conciliá-la com a carreira académica.

Abandonou a vida académica pela AMI e por Portugal, país que nem sempre lhe soube reconhecer valor e onde chegou a passar fome. Arrepende-se?
Não escondo que há momentos em que me arrependo. Considero-me realizado, porque não vislumbrava que pudéssemos fazer tudo o que já fizemos. Mas, do ponto de vista médico, tenho frustrações: falta-me o bloco operatório, o serviço de urgências... Passei 'de cavalo para burro', no sentido em que devo ter sido o único português a receber o Primeiro Prémio da Associação Europeia de Urologia, em Copenhaga, em 1984. Mas sei que, como cirurgião, à medida que fosse envelhecendo e as mãos me começassem a tremer, chegaria o momento em que teria que parar. Por isso, quanto mais envelhecer, mais saberei o acerto da opção acertada. O cirurgião é mais substituível do que a força dinamizadora de uma instituição como a AMI que ajuda milhares de pessoas. Quem está numa instituição deste género vive sempre entre a grande satisfação e a grande frustração.

A sua referência nunca foi Che Guevara, mas Albert Schweitzer.Ainda tem o sonho de construir em África um hospital, como ele fez no Gabão?
Continuo a dizer que o meu sonho mais profundo é construir um hospital no meio de África, onde pudesse fazer a chamada 'medicina de mato', em que o médico assume todas as responsabilidades do que acontece no terreno. Estar no mato sozinho é como dar um salto mortal a dez metros de altura do chão, mas sem rede. Se falhar, bato no chão. Foi a sensação que experimentei muitas vezes.

Que recordações o assaltam mais vezes nas 53 missões já desenvolvidas pela AMI?
Tantas... Às vezes, estou deitado, de olhos abertos, a rever muitas cenas que vivi. A história mais trágica é, talvez, de 1994, no Ruanda. Lembro-me de uma jovem de 19 anos num campo de refugiados, extremamente doente. Estava muito magra, com aqueles olhos quase delirantes. Fiz tudo para a salvar. Ela podia ser minha filha. E constatei que, infelizmente, não podia. Não consigo esquecer a cara e os olhos dela. Em 1982, quando estive em Beirute Ocidental, na Palestina, presenciei uma história de esperança: a existência de uma comunidade judaica que se reunia numa sinagoga, numa cidade bombardeada por Israel. Essa história demonstrou que dois povos semitas podiam ter um entendimento se houvesse bom senso e humanidade.

Mas foi justamente em Beirute, onde teve a morte quase como certa, que vacilou pela primeira vez...
Tentaram assassinar-me, embora não soubessem que era médico. Na altura, os médicos ainda tinham segurança. Depois, em Sarajevo, nos anos 90, começaram a aparecer assassinos profissionais, executam quem quer que passe no seu raio de acção. O que me tentou executar falhou porque dei um passo em falso, mas a bala ainda assobiou na minha orelha esquerda. Na altura, interroguei-me: "O que é que estou a fazer? Vou transformar a minha vida num charco de sangue em nome de quê?" Tinha 30 anos, um filho de dois anos e uma menina de três meses. Acho que, se pensarmos na morte, nem que seja um minuto por mês, conseguimos perspectivar a vida de outra maneira, com outros valores, com mais humanidade.

Esse período marca uma viragem na segurança das ONG?
A vida dos agentes humanitários civis começou a estar em perigo quando, a partir de 1993, após a Somália, os Estados começaram a fazer intervenções militares com exércitos nos teatros de guerra, porque perceberam que a acção humanitária é uma arma política.No teatro das operações perguntam-me, legitimamente, se sou militar. A idade da inocência acabou. Antigamente, um médico podia morrer por saltar uma mina, mas nunca por ser executado. Agora, somos associados a uma cultura dominante, a ocidental, e pensam que somos agentes encapotados.

Afirmou que as instituições humanitárias são pautadas pela neutralidade. É fácil manter sempre essa distância?
Temos de lutar por isso. Quando as instituições humanitárias deixarem de ser imparciais - e algumas já deixaram -, a acção humanitária está posta em causa. Enquanto seres humanos, podemos ficar revoltados com algumas situações, mas temos de tentar ser neutrais, porque daí decorre a nossa própria capacidade de ajudar.

Que cenário encontrou no Iraque?
Não entrei no Iraque porque, na altura, a minha mãe estava a acabar a sua vida e quis estar com ela. Mas a equipa da AMI entrou a 22 de Abril. A situação foi muito complicada. As carências eram grandes no campo do abastecimento de água e luz eléctrica. E à medida que o tempo passava, a insegurança chegou a tal ponto que as nossas viaturas tinham mesmo de andar sempre de vidros fechados porque os nossos próprios seguranças alertaram-nos para a possibilidade das bombas artesanais serem atiradas para ali. Mas acabámos por ser bem aceites.

Que leitura fez do ataque dos EUA?
Foi uma guerra ilegítima e ilegal, de argumentos falsos. A condução da guerra foi feita sem nenhum bom senso: o importante eram os poços de petróleo e não o bem-estar das populações. Isso foi muito mau, porque o povo iraquiano sentiu-se ofendido na sua inteligência. "Eles não estão cá por nós, estão cá porque estão interessados na nossa matéria-prima", diziam.

Concorda que as acções humanitárias parecem ter, por vezes, um efeito perverso, ao permitir que governos corruptos se mantenham no Poder?
Acalento essa sensação. Às vezes, tenho vontade de sair do teatro de operações, porque a nossa presença, ao atenuar um certo descontentamento, permite que certos governos corruptos, e até ilegítimos, se mantenham no Poder. Por outro lado, tentamos sempre olhar para o ser humano como algo de único. Em 1994, no Ruanda, antes de chegarmos ao campo, morriam cerca de 2200 pessoas; passado um mês morriam 80. Quanto aos nossos governos, a acção humanitária serve de álibi para não se tomarem decisões de fundo. Daí que o Estado esteja a especializar-se em acções humanitárias. É barato e tem impacto mediático.

O orçamento da AMI ressente-se em alturas como esta, de recessão económica?
Notamos mais nos peditórios de rua, porque a população vive uma situação de aperto há três anos. Devido à sua acção e à mensagem de coerência, a AMI conseguiu uma fidelização que faz com que passe os momentos difíceis relativamente bem. O nosso orçamento anual depende em 20% de fundos institucionais, 70% da sociedade civil, e os outros 10% somos nós próprios que alimentamos. Desde o início, perspectivei que um dia viriam as 'vacas magras', pelo que tivemos sempre em conta a necessidade de criar uma reserva estratégica. Timor foi paradigmático: em Setembro de 1999, fomos a única instituição portuguesa a actuar fora do guarda-chuva do Governo. É fundamental que as organizações não governamentais actuem de modo próprio, com o seu timing próprio, dependendo só da sua capacidade. Hoje, já todos os partidos perceberam que a AMI não é governamental, ou seja, é não governamentável.

O que representa a nova aposta da AMI em Portugal, os centros de acolhimento?
A AMI já actuou em 53 países de todos os continentes, o que significa que vai muito além do espaço de língua portuguesa. Acredito que a acção humanitária tem de ter a dimensão do Mundo. A nossa acção em Portugal começou há dez anos, quando inaugurámos o primeiro centro social. Entretanto, abrimos mais oito, o último dos quais em Gaia. A nossa população já percebeu que não estamos só preocupados com a miséria do Mundo, mas também com a do seu país, onde - e isto é uma vergonha nacional -, 20 % das pessoas vivem no limiar da pobreza. Temos de assumir essa vergonha para a podermos ultrapassar. Não é a falta de dinheiro que faz com que as coisas não se resolvam em Portugal: é a falta de vontade política na resolução das grandes causas.

Alguma vez teve vontade de adoptar uma dessas crianças?
Não. As coisas não se resolvem a trazer crianças para cá, desintegrando-as do seu próprio meio familiar. Temos de fazer com que o desenvolvimento seja possível nos países onde elas vivem.


Confissões

Combate Pobreza galopante
A meta foi definida por Kofi Annan: reduzir a pobreza até 2015. Mas Fernando Nobre é pessimista: "Passaram quatro anos e tudo indica que apenas vão ser atingidos 15% dos objectivos". E refere o exemplo da SIDA: "Não conseguimos angariar os 6 mil milhões de dólares precisos para combatermos a doença, quando sabemos que no Iraque já foi gasto muito mais".

Miséria: A tragédia do Ruanda
"Quem salva uma vida salva o Mundo inteiro". O provérbio é judeu. Fernando Nobre cita-o e subscreve-o. Teve a certeza disso, no Ruanda, quando, diante de tanta miséria, a sua equipa começou a vacilar, dominada pela impotência. "Disse-lhes que a nossa razão de estar ali era justificada, nem que fosse para salvar só uma vida". E acrescentou: "Sozinhos, não solucionamos esta tragédia , mas, no dia em que deixarmos de pensar que há algo a fazer, vamos ser máquinas a passar por cima de pessoas mortas nos passeios". Foi o que aconteceu agora em França, noticiou o "El Mundo". "Que se pode esperar de uma sociedade que deixa um sem-abrigo morrer de hipotermia?"

Família, a grande sacrificada
"Se soubesse o que sei hoje, nunca teria pensado em casar e ter filhos", lamenta. Pai de quatro crianças, confessa "um profundo sentimento de culpa": "O pai é médico, mas está sempre ausente. Quando telefono para casa, há sempre um filho com uma otite ou uma gripe... e raras vezes estou lá para acudir".
Perfil

Idade 53 anos
Trabalho - Médico especialista (Cirurgia geral e Urologia)
Naturalidade Luanda (Angola)
Prémio - Primeiro prémio da Associação Europeia de Urologia, em Copenhaga (1994)
Instituições - Fundador da AMI, colaborador dos Médicos Sem Fronteiras
Sonho - Contruir um hospital em África

sábado, outubro 16, 2004

José Luís Peixoto

"Procuro a verdade mais do que a beleza"

Chegou na passada sexta-feira de Nova Iorque o escritor que fala como escreve. Com açúcar derretido. E é, como parece, melodioso, sossegado, alado. José Luís Peixoto, que recolheu o Prémio José Saramago ao segundo livro, viveu, durante três meses, na Colónia Internacional de Escritores de Ledig House, com uma bolsa de criação do Instituto Português do Livro e da Biblioteca. "Foi muito bom. Conheci o método de trabalho dos escritores dos Estados Unidos. São mais pragmáticos, eficazes, vão directos ao assunto", confessou, na sua voz pausada, sentado nas costas de uma das cadeiras do Auditório do Centro de Arte Contemporânea, da Gulbenkian, em Lisboa. Ao fim da tarde.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 29 de Outubro de 2002)

"Quando fui distinguido por 'Nenhum olhar' - uma história sobre a traição vista pelo lado de quem trai -, estava a meio do romance que lança, hoje, nas livrarias, a par de um livro de poesia."Costumo dizer que é um livro de poemas escrito a pensar no romance, também ele escrito a pensar nos poemas". Dito de outra forma: "São dois livros complementares, mas independentes". "A Casa na escuridão" é uma história de amor.

O pai no primeiro livro

A dois anos de distância dos redondos 30, que encara com "naturalidade", o pai de um menino de seis anos lançou o primeiro livro - uma edição de autor, com 500 exemplares - quando, ele próprio, perdera a sua figura paterna. Tinha 21 anos e colaborava com o DN Jovem, onde viria a publicar o primeiro capítulo. "Nunca imaginei que pudesse vir a ser um livro. Mas depois de publicar aquele início, pareceu-me que precisava escrever mais sobre isso", recorda.

"Faltas tu a levar o tempo. Falta o teu olhar a guiar-nos se a chuva nos puxa. Pai, ter a tua memória dentro da minha é como carregar uma vingança...", lê-se em "Morreste-me" - a mais comovente das cinco obras do autor. O texto - doloroso, porque "escrito em cima do acontecimento"-, é, ainda hoje, "fundamental". Aquela confissão sobre a perda do pai, que nunca teve coragem "de sujeitar à opinião de um editor", apresentar-lhe-ía a direcção, pessoal e literária, que pretende seguir. "Procurar mais a verdade do que a beleza, sendo que não são conceitos que se excluem".

Deste livro, de cujos direitos abdicou a favor da Liga Portuguesa Contra o Cancro, José Luís Peixoto sublinha que "não mudaria, tantos anos depois, um adjectivo, um substantivo, uma palavra sequer".

"Escrevo a minha vida"

Quem entra na obra - nos livros ou nas crónicas que continua a escrever para vários jornais - do escritor de piercing a iluminar a sobrancelha e o ouvido, fica com a sensação de estar a assaltar-lhe a vida. Não será um acometimento. É ele quem a oferece. "Aquilo é a minha vida. Ponto final", consente. E esclarece. "Não só aquilo que escrevo envolve o que é a minha vida, como a minha vida entra e se deixa envolver por aquilo que escrevo". Apesar disso, salvaguarda, "por muito ricos que os textos sejam, a realidade é riquíssima". Daí que, acrescenta, "muitas vezes, a descrição da realidade não deixe de ser ficcional".

No Jornal de Letras, onde habita a penúltima página, com uma coluna denominada "Verdades quase verdadeiras", há uma técnica, quase quilométrica, que se denuncia. "O facto de ter reacções imediatas daquilo que escrevo na imprensa leva-me a usar aquele espaço para experimentações. Tento perceber até que ponto aquilo seria viável num texto mais longo".

Ritmo aleatório da poesia

Foi, no entanto, a poesia que o despertou para o universo literário."Foi a primeira coisa que escrevi. Muito cedo. E, desde então, continuo, mais ou menos no mesmo ritmo, que é aleatório. Escrevo prosa e ficção todos os dias. Mas poesia, escrevo só quando tenho que escrever. Quando um poema chega".

"No tempo em que éramos felizes o horizonte tocava-se com a ponta dos dedos/ As marés traziam o fim da tarde e não víamos mais do que o olhar um do outro/ Brincávamos e éramos crianças felizes/ Às vezes ainda te espero como te esperava quando chegavas com o uniforme lindo da tua inocência/ Há muito tempo que te espero/ Há muito tempo que não vens".

O poema integra a "A criança em ruínas". "É um livro que fala sobretudo do crescimento, de algumas ilusões que caem e se transformam em ruínas", sustenta o autor. Muitas vezes o "eu" do poema é ele. Sem segredos. Mas o gosto que tem em partilhar textos com os leitores, deixa-o embaraçado com as pessoas que conhece. "Tenho um certo pudor em mostrar o que escrevo a quem me conhece. Fico envergonhado", confessa.

Peso da responsabilidade

Alentejano, licenciado em Línguas e Literatura Moderna, José Luís Peixoto tem ar de infante, com medo do escuro. Uma imagem que não corresponde à realidade. "Acho mesmo que temos que tentar ser felizes. Por isso, combato todas as minhas inseguranças", diz, sempre a sorrir.
Cada livro publicado tem várias edições. E todos estão a ser traduzidos para vários países do Mundo. "Nenhum olhar" integrou o programa da cadeira de Literatura Portuguesa da Universidade de Santiago de Compostela. E Saramago elogiou-lhe a qualidade de escrita.

A velocidade do reconhecimento insuflou-lhe o ego? "Trouxe-me responsabilidade. Só quem for cego pode deixar que o que quer que seja lhe suba à cabeça", conclui.
"Uma casa na escuridão" é uma metáfora sobre o amor. É a história de um escritor que se apaixona pela personagem de um dos seus livros. "O escritor está muito próximo da personagem, foi ele que a criou, ela está dentro dele, mais perto não seria possível.Mas, ao mesmo tempo, está muito longe, porque ela não é um ser físico. Ele não a pode tocar. Nesse sentido, está distante", explica José Luís Peixoto.
Esse amor, coluna vertebral de todo o romance, está em harmonia com tudo o que acontece na comunidade.Se acontecem coisas menos boas no amor, isso refletir-se-á nas histórias da sociedade. Daí nascerá um lado cruel do romance.

quarta-feira, setembro 01, 2004

Jacinto Lucas Pires


"Carreira e Obra são palavras
que me assustam um bocado"

Se não fosse Lucas Pires, como o pai, chamar-se-ia Almeida Garrett, como a mãe. De qualquer forma, as más-línguas nunca o poupariam ao apelido. Optou pelo primeiro, "com orgulho". E dedica-se, "se é que isto pode escolher-se", àqueles que não se preocupam como se chama.Com a barba a moldar-lhe o rosto, Jacinto Lucas Pires, 28 anos, escritor, interrompe o ensaio no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, onde estreará uma adaptação de contos em Dezembro, para falar do seu regresso ao Porto. "É sempre um regressar a casa, apesar de nunca ter morado lá".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 24 de Outubro de 2002)


A cidade que o viu nascer recebe, a partir de amanhã, duas peças do autor. "Uma coincidência feliz, que só acontece pela minha ligação aos actores e encenadores Marcos Barbosa e Nicolau Pais", sublinha. Estiveram os dois com ele na construção do "Escrever, falar", em Tondela, de onde viriam a nascer os projectos "No fundo, no fundo", que sobe, amanhã, ao Teatro Helena Sá e Costa, e "Coração transparente", em cena no espaço Maus Hábitos, até 27 de Outubro.
"É engraçado como de uma peça nasceram outras duas. Eu só tinha uma ideia de duas personagens que se encontravam num lugar indefinido...". As três peças foram concentradas pela Cotovia num livro, que estará nas bancas no próximo mês.
Contador de histórias

Francisco Lucas Pires distinguiu-se pela sua condição de homem culto e simples. O mais velho dos quatro filhos copia-lhe os passos. "As coisas mais importantes da minha vida aprendi-as com o meu pai e a minha mãe. É bom que isso se note". Nota-se. A obra do escritor começaria a crescer em 1996, quando lança o livro de contos "Para averiguar do seu grau de pureza". Desde então, multiplicar-se-iam ficções, textos para teatro e argumentos para curtas-metragens.

Mas o protagonismo insiste em não turvar o raciocínio de Jacinto. "Carreira e obra são palavras que me assustam um bocado", confessa."Agrada-me mais a ideia de as pessoas serem tocadas por aquilo que fazemos com seriedade".

Quando o elogiam - e, às vezes, interrompem-no na rua só para isso -, "descontando o embaraço", diz, "é bom, porque percebemos que não estamos a escrever para o umbigo. Gosto de pensar que os meus textos não são só fruto de um presente que correu bem. Gosto de pensar que não me vou envergonhar daqui a uns anos". Não vai.

A modéstia é-lhe uma característica indisfarçável. Gosta do que faz, dessa possibilidade de escrever e não lhe desagrada que o vejam como um contador de estórias. "Começa tudo a partir daí", explica. No entanto, não consegue não ser severo com o seu dom.
"Flaubert queria escrever um livro sobre nada, só baseado no estilo. E o escritor deveria ser assim: encontrar uma fórmula que, só por si, sustentasse tudo. Mas eu não tenho esse talento".
Quando vê os textos transfigurados em palco sente sempre que "poderiam estar melhores", sendo, também, "uma espécie de milagre".

"Agrada-me a emoção que as palavras podem ter acompanhadas de corpos corajosos. A literatura dos livros, às vezes, padece dessa frieza: não há calor entre quem faz e quem recebe". Para quem lê, as histórias, quase todas, parecem ser sobre a solidão. E são. Mas "não sobre essa solidão que é tristeza e sombra". Lucas Pires defende que "todas as pessoas - felizes ou não -, são solitárias, no sentido de que há algo que é sempre só delas".

De resto, o escritor reconhece que "as histórias" - e ele prefere as micro histórias da vida -, "só por si, não chegam". Até porque, acrescenta, "em termos crus, já foram todas contadas. É preciso encontrar alguma coisa que nos faça entender a vida: o sentido do amor, da morte, do desejo, da saudade..."

Para o advogado que guardou o curso de Direito na gaveta - "onde permanecerá enquanto me deixarem viver da escrita" - ,"é no olhar sobre essas histórias que poderá haver a tal forma de solidão, no sentido feliz".

Há pouco menos de dez anos, Jacinto era anunciado na Imprensa, nacional e estrangeira, a par de escritores como Pedro Rosa Mendes, como uma promessa. Começa agora a cumprir-se. Ele, que escreve todos os dias - "embora, às vezes, apague mais do que escrevo" -, diz que "a expectativa é sempre dos outros. E a confirmação também. O próprio é que tem de escapar aos rótulos". Apesar disso, reconhece, "é bom ter a possibilidade de trabalhar.E aprender."

Assumidamente "de Esquerda", Jacinto Lucas Pires continua a tocar na guitarra que o pai lhe ofereceu aos 13 anos: "É uma das coisas que me descansa".

Um encontro e um monólogo

Integrado na primeira edição do projecto do Centro de Dramaturgias Contemporâneas do Porto, "No fundo, no Fundo", encenado por Marcos Barbosa, estreou em Agosto, em Faro. "Eu e o Marcos somos amigos desde crianças. Temos uma cumplicidade muito grande. Quase falamos por meias palavras. Entendemo-nos no silêncio. Os conflitos resolvem-se com um olhar. Trabalhar com um encenador assim, tão de perto, ajuda muito, porque o texto pode aprender com a cena", refere Jacinto Lucas Pires.

A peça - "sobre o encontro de pessoas sós, íntegras, mortais, e também sobre o teatro, sobre a beleza que ele pode ter" - apresenta-se, amanhã e depois, às 21.30 horas, no Teatro Helena Sá e Costa.No domindo, a sessão é às 16.30 horas. No espaço Maus Hábitos, "O Coração transparente" - "uma espécie de encomenda de Nicolau Pais" - é apresentado até dia 27, às 22 horas. "É um monólogo sobre as coisas que ele me contava. Alguém que está sozinho e diz um texto. Um homem solitário a inventar lugares e a dizer a sua história e a ficcioná-la ao mesmo tempo". "Eu digo assim, aconteceu assim".