(Alex Stoddard)
Siza não se acomoda à ideia de parar de cultivar a paixão do desenho, a necessidade da arquitetura. Construiu importantes núcleos de habitação social na Europa e, tal como anunciará João Soares na próxima segunda-feira no Porto, esse será o tema do pavilhão de Portugal na Bienal de Veneza deste ano.
Esta é uma conversa feita a vários tempos. Começou a ser esboçada no Porto, teve um primeiro momento em Veneza, prosseguiu em Haia e foi concretizada em Berlim. São etapas de um percurso intenso ao qual Álvaro Siza se entregou por inteiro nos últimos meses, num regresso a alguns dos seus bairros mais emblemáticos construídos na Europa. Da Bouça, no Porto, a “Bonjour Tristesse”, em Berlim, acompanhámos a viagem, seguimos-lhe os passos, testemunhámos os encontros emocionados e emocionantes com os homens e as mulheres hoje protagonistas das casas desenhadas por alguém que tem como memória mais longínqua, enquanto criança, o desejo de ser bombeiro ou cantor de ópera. Bombeiro nunca foi, mas desenhou um belíssimo quartel em Santo Tirso. A ópera é uma sedução à qual sempre retorna. Nos intervalos da arquitetura, desenha. Nos intervalos do desenho, expressa-se como um dos maiores arquitetos do nosso tempo.
Muita gente tem de si a ideia de que sonha, respira e pensa a arquitetura vinte e quatro horas por dia. Como e quando é que descansa da arquitetura?
Tenho de descansar, senão não resistia. Tenho problemas de família como qualquer pessoa. Tenho relações com amigos. Mas uma coisa que me dá repouso são outras atividades que estão relacionadas, como o desenho, a escultura. Não sou alguém que viva só para a arquitetura.
O desenho tem uma função regeneradora?
Sim. É libertador. Desinibe. Cria umas bolsas de liberdade numa atividade que é muito condicionada. Também o uso como parte da prática arquitetónica, mas de forma independente.
Qual é a fronteira entre o desenho como ferramenta e como entretenimento?
Numa das situações há alguém que nos paga para desenhar. Na outra é livre. Há alguns arquitetos, como Luis Barragán, que uma parte do seu modus vivendi vinha de construir para vender. Não é o normal.
No seu processo de fazer arquitetura, o desenho é um meio para desfazer dúvidas?
Sim, é um utensílio de trabalho, como é o computador, de uma forma diferente, mas que não dispensa a atividade do desenho livre, que nem toda a gente utiliza. Para mim é indispensável como instrumento de trabalho. A expressão de um caminho através do esquisso é uma coisa rapidíssima.
Como parte para um projeto? Tem a mesma angústia do escritor perante a folha em branco?
Quando aparece um problema novo é preciso arrancar com novas ideias. Na maneira como trabalho ponho logo hipóteses. Umas mesmo para deitar fora, quase disparatadas, mas é uma maneira de abrir o leque de consideração daquele problema. É uma maneira de evitar o prefabricado. O desenho, o esquisso, permite muito rapidamente dar um giro pelas hipóteses que existem para resolver o problema, de uma forma ainda não sólida. Outros aspetos têm de ser amadurecidos, como de programa, de relação com quem promove o projeto, de estudo, de análise. Pode chamar-se a tudo isto angústia, embora seja um pouco exagerado, porque sabemos que vamos resolver o problema, melhor ou pior. Assim como o escritor sabe que vai escrever o livro. A angústia é um pouco romancear a situação. Não é um bloqueio. Será antes a procura.
Tem 82 anos. Nunca lhe passou pela cabeça colocar um ponto final na carreira?
Não há nada pior do que a reforma. Isso dá uma neura terrível. Depois não se sabe o que fazer. Veem-se algumas pessoas da minha idade muito aborrecidas num jardim a ler o jornal ou a jogar às cartas. Não é vida. Nunca me passou pela cabeça. Só se um dia não puder, por doença. Voluntariamente, não tomarei essa decisão para ter uma vida sossegada porque não dá sossego. Trabalhar é ter atividade. É estar vivo. Há uma tristeza na velhice que encontro ligada a essa quebra de atividade. De momento ainda tenho uns restos de força para responder à exigência que ponho no processo do projeto, que é muito cansativo, sujeito a dificuldades grandes, frustrações, mas ainda assim prefiro isso.
Haverá milhares de definições de arquitetura. Qual é a sua?
Ui… Essa é uma pergunta a que não sei responder. Há muitas arquiteturas. A primeira coisa é que arquitetura é o que não é só construção. Há uma resposta material que pode ser eficaz desse ponto de vista, mas a arquitetura na minha perspetiva vai para lá do material. Há uma parte espiritual, se quiser, que não se satisfaz só com a construção. Nas cidades, construção vê-se muita. Arquitetura, não se vê tanta. Depende também da época. A arquitetura ultrapassa a simples resposta em termos materiais e de conforto material. E, sobretudo, cumpre a sua função maior quando não é uma atividade individual.
É conhecido o seu gosto pela escultura e é impossível não recordar que por vezes há quem o veja como uma espécie de Bernini, que fez arquitetura que era escultura...
Quem o fizer é um exagerado sem remédio...
Não é raro dizer-se que algumas obras suas são como esculturas...
Não concordo muito com isso. Os aspetos escultóricos têm evidentemente lugar na arquitetura, junto com muitas outras considerações, como uma que é inultrapassável, que é de serviço. Há muita gente que considera que a arquitetura não é uma arte por a arte se referir a qualquer coisa que não tem utilidade, não tem função. Não estou de acordo. Até porque a arte, qualquer forma de arte, tem utilidade. Embora seja um conceito de utilidade diferente. Quando o Miguel Ângelo põe em Florença a famosa estátua de David e vem a população toda desfilar e admirar a obra, também havia ali a função de congregar a admiração e o júbilo de uma população inteira. Claro que Miguel Ângelo não terá pensado fazê-lo para isso, mas o que concretamente fez estava referido a uma cidade e a uma sociedade. O artista no fundo está a ser sensível ao tempo em que está a produzir e está a responder a isso.
Escultura e arquitetura podem ser mundos paralelos, próximos, mas são mundos diferentes?
Sim, sim. Quando trabalho em arquitetura, não estou a pensar em fazer uma escultura ou só umas formas.
Seria má arquitetura?
Acho que sim. Já que fala do Bernini, há um texto em que ele diz que a grande tarefa do arquiteto é transformar em belos os locais que não são. Refere isto, se não estou enganado, quando projeta uma escada maravilhosa num canto do Vaticano sem nenhum interesse, feio. Fá-lo com o objetivo de tornar aquele espaço belo, mas não é só isso. É com o objetivo de criar uma boa ligação entre dois pisos. A beleza é a função maior. Não há beleza que não contenha o resto.
Vamos então a algo próximo de tudo isso. Conta-se que Brunelleschi, quando afetado por uma doença, se vê obrigado a voltar a Florença, onde regressa com ideias tão antigas e esquecidas que se tornavam novas, como as questões da ordem, regularidade, simetria, proporção. São palavras que nunca deixam de fazer parte do vocabulário da arquitetura? Mesmo hoje?
Aí, a noção que tenho do que conheço desse aspeto é muito política. Havia um Papa que gostava do Brunelleschi, e quando ele saía entrava outro que gostava do Borromini. Na atividade há muita coisa que depende por vezes de uma pessoa outra. Agora, esses conceitos são universais, intemporais que, pela pressão, ou pela influência do contexto, do momento, da evolução do pensamento, não só na arquitetura, mas na literatura, na música, no cinema, os acabam por diferir. Portanto, a resposta também difere e surge como mais capaz para ser sensível ao momento, ou ao tempo. Este ou aquele. Até há quem, falando do Bernini e do Borromini, considere um revolucionário, o outro passadista. Ou vice-versa. Eram dois grandes arquitetos com conceitos muito fortes. Quando existe uma afirmação do moderno muito afetada por mudanças profundas, históricas, considera-se que agora tem de surgir, ou surgiu já, o homem moderno, inteiramente novo, a cidade nova. O Corbusier faz o plano em que arrasa Paris e só deixa três ou quatro monumentos porque era a cidade nova, uma ideia que rapidamente ganhou outra densidade e outras vias diferentes. Há um escrito do Bruno Zevi, um arquiteto e historiador italiano, um dos grandes críticos e autor de uma famosa história da arquitetura moderna, em que liga a simetria à homossexualidade. O que se estava a construir entre pensadores e arquitetos passava por um repúdio da simetria. Mas nunca desapareceu. Usa-se ou não. Tem que ver com muita coisa. Não pode ser um propósito. Uma receita. Quando passa a ser uma receita não dura muito tempo. Esse ou qualquer outro conceito.
A originalidade é uma busca permanente?
Essa é uma ideia que se mantém pela história fora. Porém, não se consegue ser original se se quer ser original fora do que acontece. Quem começar um trabalho a dizer que aquilo tem de ser original não vai lá das pernas. A originalidade passa também pelo que é a continuidade histórica, a história. Com cíclicas mudanças. Acredito que há uma continuidade na evolução da arquitetura. No fundo, nada é cem por cento original. Trabalha-se sempre renovando a partir do que está já feito. E são também fatores externos à própria conceção que provocam maior ou menor novidade. Veja o que foi, no fim do século XIX, o aparecimento do ferro, ou do betão. Construía-se só em pedra e tijolo. Aparece o ferro e é um fator externo ao pensamento sobre a arquitetura. É uma espécie de estímulo que vem e é muito transformador. Provoca uma nova abordagem em relação à qual há necessidade de uma modificação na expressão formal.
Apesar dessa continuidade, vão surgindo novas tendências. Ainda tem a preocupação de perceber o que de novo aparece no mundo da arquitetura?
Nem é uma preocupação. É uma natural atenção a isso, feita com maior ou menor eficácia ou competência. Quem deixa de estar sensível ao que se passa está acabado.
Quando aguardava o voo para Berlim leu no aeroporto um trabalho publicado no “El País” intitulado “As principais razões dos grandes arquitetos”, escrito a propósito do lançamento de um livro de recolha dos discursos de aceitação do Prémio Pritzker. Uma das citações é de Rafael Moneo, que denuncia o perigo de se acreditar “que a arquitetura é apenas o reflexo da cultura de um momento”. Partilha deste receio?
Aí também há diferentes momentos e opiniões. Com o futurismo havia a ideia de que cada geração devia construir a sua cidade. Construía-se para poucos anos. Vinha outra geração e fazia outra coisa. Era a ideia-base do movimento. Por outro lado, por razões económicas, de não condicionar definitivamente o mercado especulativo, estabeleceu-se que particularmente a habitação social seria para durar 20 anos. Há a outra ideia muito mais clássica e ligada à qualidade, de que a arquitetura é para durar. É uma reação oposta. Partilho mais desta opinião de que a arquitetura é para durar.
Como cinéfilo que sempre foi, como vê a frequente associação entre arquitetura e cinema?
Bastantes realizadores estudaram ou interessaram-se muito por arquitetura. A começar por Antonioni, Losey, e outros. Manoel de Oliveira, não sendo arquiteto, tinha uma grande ligação à arquitetura. Não é por acaso que vai buscar um muito bom arquiteto, José Porto, para fazer a casa na Vilarinha, onde viveu tantos anos. É um dos melhores arquitetos da altura. Não limito isso ao cinema. Há muita afinidade entre a linguagem e a expressão do cinema, da pintura, da escultura, da música, com a arquitetura. É a mesma família. É a arte, mesmo se há a ideia de que a arquitetura não é arte. Há muita coisa em comum. No cinema, por exemplo, nota-se muito como a câmara realiza o percurso intencionalmente, para determinados efeitos. Faz o grande plano e depois há uma fuga. Há um ritmo na sucessão das imagens. Na mesa de montagem é-lhe dado o sentido final. Isso existe na arquitetura. A maneira como se percorre, se usa um edifício, como se chega ao que é um átrio, um salão, um quarto de dormir, e a maneira como estão interligados, fazendo um todo na casa, tem a ver com esse percurso cinematográfico. Está relacionado com o ritmo a que os episódios se sucedem no espaço. Na música temos o ritmo, as mudanças de tom, que são meios usados também pela arquitetura para obter determinado efeito e constituir um todo com sentido. Ligado à função, mas não apenas.
Quais são nessas áreas os criadores que mais o inquietam?
Olhe, lembro-me do Visconti em “Morte em Veneza”, quando aparece aquela personagem, julgo ser o protagonista, a chegar ao hotel onde está a família do rapaz. Vê-se aquele travelling de cortar a respiração. Chega. Penetra naquele espaço e depois vê a família. Dá logo a nota de ambiente e drama por trás de tudo aquilo. Há muitos outros. A maneira como termina “As Luzes na Cidade”, quando Chaplin desaparece. Há aí essa similitude ou associações que se podem fazer de imediato. Na poesia, a maneira como se conta um estado de alma passa pelo ritmo, quer do ponto de vista do som quer da leitura. Também há a poesia que tem uma componente de grafismo, de distribuição das frases nas folhas de papel.
Vargas Llosa dizia há dias numa entrevista que o grande risco de um escritor depois de receber o Prémio Nobel é começar a sentir-se uma estátua que, como tal, perde a espontaneidade e não quer correr riscos. Repete-se...
Por acaso li essa entrevista.
Isso aplica-se a um Pritzker?
Não. Se fosse assim era de fugir dos prémios a correr. Num prémio há muito de circunstancial.
Não há o risco de, após o Prémio, quem encomenda estar sempre à espera de algo genial?
Eventualmente pode acontecer, mas temos de ligar à terra. Isso não é maneira de começar o projeto. Essa procura pode fazer-se, mas uma pessoa pode por inteiro demarcar-se sem ser agressiva em relação ao cliente. Há todo um processo em que dono da obra e arquiteto têm de se entender. O dono da obra é o primeiro arquiteto. Se ele não quer qualidade e se tem ideias desse tipo em relação ao que quer, não se vai lá. Há clientes com ideias muito próprias para uma casa, por exemplo, e isso corresponde a um sonho, ou a uma necessidade familiar. Aí há um processo autêntico de participação. Se é para fazer um prédio de rendimentos, muitos só pensam que seja uma coisa atrativa comercialmente.
Procuram um nome e comercializam esse nome?
Quantas vezes, se o nome se deixar comercializar. Se se procura manter a integridade num trabalho, pode haver desencontros. O cliente pode ter uma ideia do que é a obra espetacular, ou pode querer uma obra limitada enquanto desempenho autónomo na cidade. Há muita tendência para fazer de uma casa — que é uma célula de habitação — um palácio ou um monumento. A não ser em circunstâncias especialíssimas, está condenado ao fracasso.
Em que circunstâncias acontecem as exceções?
Há momentos históricos que ultrapassam o arquiteto e o promotor, e podem levar a que uma obra se torne ícone, para usar uma palavra que agora se usa muito. Lembro-me da Villa Savoye, de Le Corbusier, que aparece num momento em que há uma convicção grande por parte de alguns arquitetos e pensadores, de que chegou o momento de um mundo novo. Há transformações sociais provocadas por isso. Há acontecimentos da época, ou que já estavam latentes, que vão amadurecendo e então aparece uma obra excecional porque sintetiza toda essa ânsia coletiva de mudança. Aí já não é propriamente a importância do programa enquanto parte da cidade, mas é o momento. Também é curioso que a Villa Savoye nunca foi habitada. Ficou vazia e assim continua.
Enquadra-se nessa função icónica a famosa Casa da Cascata, de Frank Lloyd Wright?
Sim. É uma casa envolvida num certo dramatismo devido às relações entre o casal dono da obra. Mas é também um momento de encontro com o que estava em construção na sociedade americana e a grande personalidade do cliente, e um arquiteto também com uma convicção muito grande. São momentos suficientemente densos para produzirem obras de exceção.
Ao longo desta conversa já evoquei Bernini, Brunellechi, Lloyd Wright e Corbusier, mas podia citar Gropius ou Alvar Aalto. Não o fiz para mostrar erudição, mas para chegar ao momento de lhe perguntar se são referências para si. O que é que lhe interessa do legado destes homens?
Sim, são encontros em momentos especiais que tornam de uma grande pertinência esses encontros. Por exemplo o Alvar Aalto, que é uma das figuras a quem me associam, ou que constituem as referências com que trabalhei. No meu tempo, quando se estudava, arranjava-se com os amigos e os professores uma ou duas referências. Na Escola do Porto era o Corbusier, praticamente, e a luta pelo moderno. Havia pouca informação. Ao mesmo tempo havia em alguns sectores um repúdio dessa arquitetura que estava a nascer, muitas vezes relacionada com o comunismo. Com a relativa, mas significativa abertura que há depois do fim da II Guerra Mundial, o regime português também teve de aceitar uma certa abertura. O ambiente nas escolas melhora. Depois dá luta, e grande. Começam a vir livros, revistas com outra intensidade. Havia o desejo de recomeçar. Há uma proliferação de livros de história, textos sobre o moderno. Aparecem muitíssimas revistas. Começa a chegar às escolas portuguesas o que se tinha passado nos países que tinham participado na guerra. O cinema italiano foi muito influente em geral, mas também na arquitetura. Aparece o neorrealismo italiano. Começa a difusão do que se fazia em relação à reconstrução, por exemplo em França, em Inglaterra. Há as mudanças nos EUA, que saiu como uma grande potência. Tudo isso implica que depois já não há uma ou duas referências. Há dez, cem. Isso hoje acontece muito mais cedo devido à internet.
Faz toda a diferença?
É completamente diferente. Então, quando aparece o Alvar Aalto, ele tem uma grande importância no sul da Europa, sobretudo em Portugal, Itália, Espanha, e Grécia.
Não é estranha essa influência de um arquiteto finlandês?
Não. Ele participou no CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) e vem de um país de independência recente, periférico e pobre, como Portugal era. Na Finlândia, como em Portugal, era difícil a introdução do betão. Havia dificuldades de arranjar cimento e estava vivo um artesanato de grande qualidade. Tinha muito que ver como se olhava para estes países da periferia e como eles estavam um pouco marginalizados. O aparecimento do Alvar Aalto nos anos cinquenta caiu como pão na boca. Na época, o que havia de centros de cultura era Paris, Milão, Londres, depois dos EUA, com Chicago, onde aparecem os arranha-céus, o metropolitano elevado. De repente, há aquele exemplo de que afinal a periferia não era a pobreza criativa. Pelo contrário. Por isso ganhou uma importância muito grande e imediata.
O que representa para si este regressar aos bairros da Bouça, Giudecca (Veneza), Haia e Berlim — proporcionado pela realização da bienal de arquitetura em Veneza?
Satisfação. Fico sensibilizado com a ideia de ter como representação portuguesa a habitação social, um tema que está agora de novo na ordem do dia e em relação ao qual houve muito pouca atenção, até pela ideia de que a iniciativa privada resolveria tudo e não seria necessário os Estados estarem a gastar dinheiro com a habitação. Está provado que não é assim. Há um retorno, uma consciência de que muitos dos problemas sociais também são produto da deficiente disponibilidade de habitação acessível.
Que pontos de contacto podem ter estes quatros projetos que materializarão o Pavilhão de Portugal em Veneza, tal como o conceberam os curadores Nuno Grande e Roberto Cremascoli?
São em meios diferentes, pondo diferentes problemas e exigindo diferentes respostas. Mas, no fundo, o tema é o mesmo e está presente em todo o lado. Tornar acessível a condição boa ou aceitável de habitação a todos os sectores da sociedade.
Uma curiosa consequência desta opção para a Bienal passa pela conclusão do bairro na ilha da Giudecca, em Veneza…
Sim. Não que não houvesse pelo menos afirmada uma intenção de concluir. Houve interrupção de obra porque o empreiteiro faliu. Esta iniciativa deu um grande impulso.
A propósito da sua ida para escultura, disse que não teve necessidade de matar o pai. Que memória tem hoje dos seus pais?
O meu pai era engenheiro, um grande trabalhador. Tinha de ser naquele tempo, porque nós éramos cinco. Mesmo um engenheiro tinha um salário reduzido. Para conseguir manter a família dignamente tinha de dar aulas à noite na Escola Industrial Infante D. Henrique. Éramos uma família de classe média. Tínhamos empregada, mas isso era normal. Ganhavam muito pouco. Eu próprio, quando me casei, tinha empregada. E só ganhava quatro contos por mês. Tudo na vida era económico. Ir comer a um restaurante era um acontecimento. Como ir ao cinema. O meu pai era muito interessado pela cultura em geral. Havia os concertos, gostava muito de viagens. Era um homem com uma vida social intensa e com muita alegria de viver. Foi o diretor do jornal de Matosinhos, que era “O Pelicano”. Se não fossem as necessidades, ele deveria ser escritor.
O seu pai transmitiu-lhe várias apetências culturais?
Lembro-me de que as rádios horríveis que havia na época, quando transmitiam ópera o meu pai ficava a ouvir, ou ia à ópera no Porto. Lembro-me de virem grandes cantores italianos. Depois havia o Conservatório de Música, de que ele era sócio e a minha mãe também. Eu próprio ainda o frequentei.
A ópera ainda lhe interessa?
Ainda. Dizer-se que se gostava de ópera era ridículo. Era um gozo tremendo, porque era considerada uma manifestação menor. A ópera não tinha prestígio nenhum nos da minha geração. Quando eu dizia que gostava de ópera, gozavam. A música séria era a música sinfónica. Beethoven, talvez até Tchaikovsky. A partir daí parava. Para muitos dos que me gozavam, anos depois a ópera passou a ser uma coisa sublime, porque era democrática.
E a sua mãe?
Como se dizia então, era doméstica. Morreu poucos dias antes de fazer 101 anos. Era de uma dedicação enorme à família e aos filhos. Muito protetora. Mas também era uma pessoa alegre e participava nessas saídas à ópera ou ao cinema. A vida familiar era muito diferente do que é agora.
E acabou por ter uma irmã freira...
Sim, uma irmã freira. Está em Bragança.
Das muitas lendas que correm sobre si, há as que o apresentam como muito triste, misantropo, obcecado pelo trabalho, onde encontraria escape para dramas pessoais. Ri-se destas leituras, ou fica aborrecido?
Provocam-me riso. É evidente que tive acontecimentos na vida muito penosos e, por isso, períodos de grande tristeza. Mas no essencial não sou nada triste, como verá se perguntar a amigos meus. Reconheço que sou pouco comunicativo e exuberante. Não sou extrovertido. Tenho poucos amigos, mas são muito bons. A minha vida social é sobretudo com a família e com amigos. Não sou de ir a festas ou jantares de cerimónia. Quando tenho de ir é uma chatice. Sacrifico-me.
Tem um filho arquiteto. Apesar dos seus conselhos?
Nunca o incentivei, mas fui-lhe dizendo que aquela via não era grande caminho. Mas ele queria e não insisti. Não ia contrariar. Tem muito talento, mas em termos de trabalho está difícil. Está para todos. Tem umas três obras de muita qualidade, mas isso não basta. Também precisava de sair mais, viajar. Mas não sai. Está muito dentro de casa.
É muito diferente de si?
Ah, sim. Em termos de vida social não tem nada que ver comigo. Gosta de festas. Há gente que conheço há muito tempo e trato por você, mas a quem ele trata logo por tu. São hábitos diferentes. É uma diferença de atitude da nova geração.
Imagino que estará ansioso por ir fumar o seu cigarro. Nunca ninguém lhe falou dos malefícios do tabaco?
Não ouço outra coisa. Sobretudo dos meus filhos. Dizem que é uma loucura. Mas também já encontrei médicos a dizerem-me para não deixar de fumar, porque isso seria terrível. Com a idade que tenho, deixar de fumar... Há médicos que dizem que isso seria um choque terrível no organismo.
* Valdemar Cruz, hoje, no Expresso