segunda-feira, março 30, 2015

Karl Ove Knausgard: A morte do pai


"Quando sabemos muito pouco, é como se esse pouco não existisse. Quando sabemos muito, é como se esse muito também não existisse. Escrever é retirar da sombra aquilo que não sabemos. Escrever é isso. Não o que acontece aqui e acolá, não que eventos aconteceram aqui e acolá, mas sim o próprio aqui e acolá. É esse o lugar e o objectivo da escrita. Mas como lá chegar?

(…)

Durante vários anos tentara escrever sobre o meu pai, mas não chegara a lado nenhum, talvez porque o assunto era demasiado próximo da minha vida, e portanto nada fácil de transpor para outra forma, o que naturalmente é um requisito da literatura. É essa a sua única lei: tudo tem de se submeter à forma. Se algum dos outros elementos for mais forte do que a forma, como o estilo, o enredo, o tema, se algum deles se apoderar da forma, o resultado será pobre. É por isso que escritores com um estilo forte escrevem muitas vezes livros fracos. É também por isso que escritores com temas fortes escrevem muitas vezes livros fracos. A força do tema e do estilo deve ser destruída para que a literatura possa existir. É a essa destruição que se chama "escrever". Escrever relaciona-se mais com destruir do que com criar. Ninguém o sabia melhor do que Rimabaud. 

O extraordinário nele não era o facto de se ter apercebido disso numa idade perturbadoramente precoce, mas o facto de também o ter aplicado à sua vida. Para Rimbaud, tudo se relacionada com a liberdade, tanto na escrita como na vida, e era por a liberdade estar acima de tudo que ele podia deixar a escrita para trás, porque também ela se tornou para ele um limite que tinha de ser destruído. 

A liberdade é igual a destruição acrescida de movimento."

[Só não é angustiante terminar este livro, porque ele é apenas o primeiro de seis volumes. E o segundo chega já em Maio. Karl Ove é norueguês e é a confirmação de que a literatura nórdica começa a competir com a literatura russa, a melhor de todas.]


sábado, março 28, 2015

Pedro Santos Guerreiro: Crónica H


Estou acordado. Fala-me de ti.
Hoje não há espadas trespassando os cometas da semana, Herberto Helder morreu e eu vou escrever uma crónica. Não é um texto de opinião, não é um editorial, não é sequer uma coluna, são apenas quatro quartos de coluna, é uma crónica, é fogo daqui em diante, a saída de emergência é já aqui. Saia. 
Fique. 
Não peço desculpa pela interrupção: ou escrevo sobre Herberto ou escrevo sobre um doido voador que barrica 149 pessoas do lado de fora de um cockpit e deixa de epitáfio à insânia a sua respiração pavorosamente normal, compasso trágico cravado numa caixa negra (negra, negra) do silêncio impassível impossível de um 'suicidomicida'.
Vê? Um neologismo, coisa de crónica. Crónica não é o entendimento do mundo, é uma visualização pessoal dele. "Ver é a pura loucura do corpo" e a loucura não é falar de Herberto, é falar de nós ao lê-lo, para fugir "às arenas do puro intolerável". Nesta crónica a primeira pessoa é ele, a terceira pessoa sou eu - e eu agora vou tratar-te, Herberto, como se ele fosses tu. Tu, Herberto, para mim não morreste pela mesma razão que para mim não viveste. Li-te sem precisar de te conhecer de parte nenhuma, sem ter curiosidades sobre ti, se eras feliz, se eras pobre, se fumavas Gauloises ou comias peixe frito, se eras como nós, se eras de cá - se eras vivo. 
Herberto fará muita falta à sua família, aos seus amigos, aos que tinham a sua vida na vida dele - e a esses prestamos respeito. A mim, Herberto Helder não fará falta. Para mim, ele não é vida e obra, é obra, obra toda, e a obra está comigo, connosco, envelopada em livros a que falta juntar um, sai daqui a meses. Não sinto pois saudades, mas gratidão, e nem sequer é a ele, é à dádiva. Nós sabemos que Herberto não queria ser falado (as frases oficiais desta semana... credo... país que dá ao poeta morto o que não dá ao poeta vivo...). Como escreveu o outro do século XX, de que se fala sempre que se fala de Herberto (parece estar em debate se eles dividem o século ao meio ou se ficam os dois com o século inteiro): "Assim, como sou, tenham paciência!/ Vão para o diabo sem mim,/ Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!" 
Crónica, dizia. Herberto Helder em nós. Um clamor. Um frémito. Um estremecimento. Um adoecimento. Desejo, ensejo. Palavra. Dedos molhados, pedras ásperas, sal, praias de labaredas. O que somos quando somos amantes? Quando tudo em nós é ela? Sexo. Morte. Solidão - um a falar de outra quando queria ser dois. Servidão. Certeza. Entra-se e a gruta subitamente não é escura. Obscuro, Herberto? "Como brilham violentamente as cicatrizes." 
Este texto é meu e não vim cá hoje para ver nem para ler, vim para estar. E ir. Afinal, isto é uma crónica e é a minha forma de expressar não o amor por ele mas o amor pelo amor que ele nos revelou. Herberto, o que quero eu? É apenas uma crónica, não preciso de vencer. Só quero dizer: Herberto é para ler todo e serve para ler tudo. É para nos vermos a nós depois dele, no nosso mundo depois daquele, que são o mesmo, mas nós diferentes. 
Sim, estou acordado. Fala-me outra vez.
P.S. - Esta crónica tem quatro citações. Elas são, por ordem, de Clarice, Sophia, Pessoa e Herberto: os quatro quartos da coluna.
[Hoje, no Expresso]

terça-feira, março 24, 2015

Herberto Helder (1930-2015)


"Os animais podem ser humilhados ou destruídos. Há uma espécie de dignidade por falta de recursos morais, há uma inteireza fundada no mundo natural. Por meio de consciência, o homem alcança o poder ou a vulnerabilidade que o destrói. Escolhe-se a força ou a destruição própria, através da inspiração passada às provas, na enigmática malha da vida, opondo as astúcias do talento a cada repto de coisas. É o génio íntimo de cada um. Génio que não dá paz, que se contenta de si, e se alimenta no seu mesmo exercício. O poder é o poder, mais nada.

Um bicho, depois de fugir do pânico, assenta as patas na terra e avança inteiro, com os cornos baixos, ele todo projectado na violência da cabeça. Passa ou não passa. Passa ou morre. A morte é o seu abismo. Não pede perdão. Porque a inteireza animal é cega, limpa como a luz. Então, no largo onde o touro lutara com os homens, encontram-se agora os dois homens, um diante do outro, a cinquenta passos de distância, com a carga da consciência pessoal, o poder e a vulnerabilidade.

O rosto do homem que ressuscitou é agora um rosto fixo e acerbo, o rosto de um homem que morreu e, cerrado, se pôs lentamente a ressuscitar. E o outro estremece, porque de súbito encontrou a sua própria vulnerabilidade. O homem avança como se o seu corpo nem sequer se movesse, e quando chega perto nada resta ao outro senão deixar que a sua vulnerabilidade o torne inteiramente sensível, tome conta dele, alastre como a lepra, e ele fique vulnerável de uma ponta à outra. Então cai de joelhos e diz: - Perdão!
O homem murmura algumas palavras que apenas os dois podem perceber, mutuamente fascinados, o poder e a vulnerabilidade frente a frente. Diz: - Vou matar-te. O rosto é o mesmo - tenso e triste; e os olhos, extraordinariamente límpidos, assim: frios, vazios. Então grandes lágrimas sobem aos olhos do outro, e escorregam-lhe pela cara. Está imóvel, caído de joelhos, com as mãos no chão, e pela cara soerguida escorrem lágrimas. Repete: - Perdão! E o homem, que parece nem olhá-lo, que olha para dentro, sussurra ainda com a mesma tenebrosa cumplicidade: - Perdoo-te se disseres…

A cabeça do outro está exposta - nua e frágil - à luz muito alta. A luz corta-a. - Se disseres: tu tiraste-me a vida e tornaste a dar-me vida. E a luz parece agora fluir e refluir naquele rosto entregue, parece fazer nele um nó doloroso, e a boca diz: - Tu tiraste-me a vida e tornaste a dar-me vida.

O homem sorri de leve, como se tivesse ouvido uma frase infantil, e o seu espírito violento e irónico não pudesse captar toda a graça de uma frase tão inocente. Como se o poder se houvesse esgotado no poder, e o homem estivesse agora longe, de novo só, de novo isento e fundo, no lado de lá. O outro cai para diante, com a cara na poeira, e fica a tremer e a soluçar debaixo da luz esplêndida, cada vez mais alta."
Herberto Helder, Os passos em volta

terça-feira, março 03, 2015

Ruy Belo: Transporte no tempo



Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de se ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A via enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdoar e todos justiçar dente por dente
de tanto desistir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
E para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente

[Encantada, Ricardo. Obrigada.]

segunda-feira, março 02, 2015

Sérgio Figueiredo: Os microgestores


1- O microgestor é mesquinho, é inseguro e é normalmente arrogante. A microgestão não é uma coisa de inteligência nem de visão: há quem veja a floresta e há aqueles que só conseguem olhar para a árvore, o microgestor faz diferente. O microgestor conhece a floresta, entende-a, mas entra por ela adentro de motosserra na mão e corta cada árvore que encontra.

Autoridade e autoritarismo são a mesma coisa. O medo é confundido com respeito. E a pressão com compromisso. O microgestor é um obcecado com regras e método, sendo, porém, o primeiro a transgredir nas primeiras e a detonar o segundo.
Não se trata de colocar os processos acima dos resultados. Isso é o que define o picuinhas, o burocrata parado no tempo, o medíocre missionário que conduz as equipas para lugar algum. O microgestor é pior, é muito mais nefasto, porque se considera um iluminado. Ele é quem mais sabe, impõe a todos a sua inquestionável sabedoria e assim aniquila a cultura de empresa, o espírito de equipa e a responsabilidade individual.
Atribui responsabilidades aos subordinados, mas invade frequentemente a sua esfera de atuação. Motivado pela ansiedade e por espírito competitivo, não tem o dom da paciência, é definitivo nas conclusões e naturalmente instável nas opiniões. Facilmente oscila, vacila, muda de humor e de decisão, sobre as coisas, sobre as pessoas. Não se trata de bipolaridade, o microgestor é simplesmente um ser imprevisível.
2- Há três formas de lidar com um microgestor: a) guardar para si o que pensa, baixar o perfil de comportamento e reduzir a mínimos níveis de desempenho e de produção; b) trocar a gestão pela execução, limitando-se a cumprir ordens; c) pelo contrário, assumir as suas ideias, lutar por elas e não se resignar ao direito próprio da intervenção.
Nos dois primeiros casos, evita-se o confronto. No terceiro, naturalmente compromete-se a carreira. O microgestor não gosta de ser contrariado. Mas, acima de tudo, detesta ser confrontado com erros cometidos por subordinados. Por isso reduz o risco, aniquilando a iniciativa de terceiros. Insiste em ver, rever e voltar a aprovar tarefas e ações já previamente combinadas. É a fase do reporting, dos pedidos desnecessários de trabalho inútil e relatórios redundantes, de reuniões sobre reuniões, horas a discutir a discussão.
A maioria dos microgestores é workaholic e imprime ritmos de trabalho alucinantes a quem deles depende. Preferencialmente rodeia-se de yes-man, gente diligente e cobarde. Rebanhos organizados no caos, conduzidos pelo pavor de agradar, subvertendo prioridades, para que a resposta à última ordem seja a coisa mais importante do mundo. Mais importante até do que a sua própria missão. A relação hierárquica deixa de ser a forma mais eficaz de organização do trabalho. É o trabalho que se organiza em função da relação hierárquica.
3- Há microgestores de sucesso. Ou pelo menos dessa forma percecionados. Mantêm-se longos anos nos cargos, apresentam bons resultados aos acionistas, os únicos stakeholders que verdadeiramente consideram. E estes assumem que é a melhor forma de garantir qualidade a custos controlados.
É aqui que o problema ganha a dimensão institucional. A organização torna-se irremediavelmente disfuncional, muitos dos melhores vão embora e, entre os que ficam, enraíza-se a frustração e a desmoralização, toda a estrutura é por aí abaixo contaminada.
Não há sucessos sustentáveis, não há resultados que resistam no tempo quando o "moral das tropas" é baixo, de forma duradoura e persistente. Uma cultura corporativa doente retira autoestima às pessoas, aniquila a capacidade de iniciativa, destrói a criatividade e, com ela, a base da inovação. Assim se compromete a produtividade. A prazo, os resultados que geraram a ilusão de eterna prosperidade.
4- A história de empresas microgeridas não é um mundo à parte do país macroeconómico, que todos os dias noticiamos, que frequentemente criticamos. Há empresas grandes com microgestores e há pequenas empresas com extraordinárias práticas de gestão. Mas a regra é micro. Como o PIB e os indicadores económicos do país, maus demais por serem fracos e durarem há tanto tempo.
Num país que sempre viveu debaixo do Estado - na monarquia, na ditadura (com o condicionamento industrial e todas as outras restrições à liberdade) e na democracia (que primeiro nacionalizou e depois controlou através das privatizações viciadas ou da subsidiação maciça) -, os microgestores não se viam porque os políticos assumiam a responsabilidade.
A boa notícia é que isso acabou. O Estado não tem dinheiro nem empregos para distribuir. Não há espaço para choques fiscais. A competitividade nacional depende muito mais de um "choque de gestão" que falta acontecer nas empresas. Como aqui não se vota, espera-se que aconteça. Senão, abandonar uma empresa microgerida é sempre uma opção. Como emigrar tem sido um ato de coragem. Até pode ser fruto de desespero. Mas de certeza que nunca será de resignação.

Hoje, no DN