quinta-feira, janeiro 30, 2014

André Macedo: A minha carta a Ramírez


Logo que soube que Pedro J. Ramírez ia deixar a direção do “El Mundo” fiquei com um formigueiro nos dedos. Tinha de escrever esta nota com toda a urgência. O Pedro J. produz esse efeito de impaciência nos jornalistas: um sentido de missão, responsabilidade e sentido coletivo. Ele põe toda a gente a correr atrás de um assunto. É também por isso que o Pedro J. é o melhor diretor de jornais que conheci nestes últimos 20 anos. É também por isso que digo, sem admitir a menor dúvida ou aceitar a mais leve hesitação, que não há melhor do que ele à frente de um jornal na Península Ibérica.

Ninguém teve a inteligência, a coragem, a perseverança e a visão que ele revelou ao longo destes anos todos – duas décadas – num lugar de máxima responsabilidade e total exposição. Não conheço outro diretor de jornais que tenha enfrentado tão frontalmente, tão brutalmente e tão perigosamente os poderes políticos e empresariais mais corruptos de Espanha ou o equivalente em Portugal.

A sua folha de serviço inclui cachas e investigações jornalísticas que vão do caso GAL (terrorismo de Estado patrocinado pelo PSOE contra a ETA); ao atentado de 11 de março de 2004 em Madrid, que ainda hoje o “El Mundo” não deixou cair; ao processo Urdangarin, o marido da infanta Cristina, que faz tremer a monarquia; aos casos de corrupção regional e, claro, a tudo o que diz respeito à ETA, que o obriga ainda hoje a andar sempre escoltado.

Conheci Pedro J. porque ele foi meu publisher quando fui diretor e, antes, diretor-adjunto do "Diário Económico", que pertencia à Recoletos. Ele veio um par de vezes a Lisboa e eu fui algumas a Madrid participar em discussões e reuniões. O que tive a oportunidade de testemunhar? Um tipo culto, inquieto, direto, teimoso e capaz de ouvir os outros sem os atropelar. Vi um tipo que respirava jornalismo e notícias, notícias de todo o género e feitio – do ciclismo, que ama, ao basquetebol, que o faz vibrar, à política e à literatura. 

Hoje, no Dinheiro Vivo

A despedida no el Mundo:
http://www.elmundo.es/television/2014/01/30/52ea9d84ca474113658b4579.html

Diana by Oliver Hirschbiegel ***

quarta-feira, janeiro 29, 2014

segunda-feira, janeiro 27, 2014

Rute Sousa Vasco: "Porque os jornalistas não podem estar à margem do 'negócio do jornalismo"

"Poucas profissões têm sentido os ventos do 'admirável mundo novo' como os jornalistas. Há 20 anos (em Portugal, note-se) estávamos na vertigem de sermos rockstars. A TSF, o Público, a SIC foram os grandes responsáveis dessa vertigem. Pela primeira vez, em Portugal, note-se, formava-se uma nova fornada de jornalista nesse mix perfeito entre a 'tarimba' e a universidade. Fazendo parte dessa geração, sei, passados estes anos, que é um tempo irrepetível. Todos os tempos são irrepetíveis, mas este é mesmo-mesmo irrepetível. Havia um pouco de tudo. O jornalista que tinha fontes porque era amigo de jornalistas que tinham fontes (era uma questão de estar no sítio certo e ouvir as conversas certas), o jornalista que tinha atravessado os loucos anos 70 e 80 e que conhecia toda a gente que estava - finalmente - instalada nos anos 90, o jornalista que que tinha feito as reportagens mais underground possível quando realmente havia underground. O jornalista que gozava connosco, os miúdos, o jornalista que nós idolatrávamos, o jornalista que se idolatrava (bom, esses não são irrepetíveis). Fumava-se nas redacções, começava-se a beber o copo de fim da tarde cedo nas redacções, havia vida nas redacções. As pessoas discutiam, zangavam-se, voltavam a ficar amigas, ficavam inimigas para a vida, algumas casavam-se, outras mantinham paixões platónicas. Havia vida nas redacções.

No Público, onde tive o enorme e irrepetível privilégio de me tornar jornalista (ou de fazerem de mim jornalista), fiz os melhores amigos do mundo, vivi  alguns dos melhores dias da minha vida e a saudade que tenho desse espaço e desse tempo dificilmente será algum dia superada por outra coisa qualquer.

Havia vida nas redacções. Os anunciantes anunciavam e os investidores tinham algum pudor de bradar aos céus 'onde está o meu dinheiro' (ficava mal, o produto 'jornalismo' não era um produto qualquer). Os ordenados eram pagos, os bons jornalistas mudavam de jornal ou rádio ou tv por convite e a expectativa era de fazer melhores trabalhos, encontrar notícias que eram mesmo notícia e viver a ansiedade que mediava entre um dia e o dia seguinte sem saber se a nossa notícia era mesmo única. Políticos, homens de negócios, lobistas ou outras 'forças vivas' da sociedade faziam pressão, como sempre fizeram, e os jornalistas, os bons jornalistas, aguentavam-se com essa pressão e respondiam fazendo o que os bons jornalistas fazem e que é jornalismo.

Os tempos eram assim e durante algum tempo acreditámos que seriam sempre assim. Pouco tempo.Os media tornaram-se sexy e atraíram marketeers, CFOs e consultores. Tudo espécies até aí desconhecidas.Porque se tornaram sexy, os media tornaram-se símbolo de poder e de sucesso. Atraíram também por isso pessoas que na realidade não faziam qualquer questão em ser jornalistas. Algumas só queriam 'ser conhecidas' no supermercado ou na rua lá do bairro. As agências de meios entraram em força em Portugal e traziam cheques chorudos com adiantamentos aparentemente generosos para uma indústria que se tornou cara (melhores escritórios, mais tecnologia, pessoas que a própria indústria tornou 'famosas' e que por causa disso se tornaram mais caras).O ecossistema, como hoje se diz, ficou confuso.

Durante meia dúzia de anos, continuaram a existir anunciantes a anunciar, (mais) investidores a investir, e muitos, mesmo muitos mais, a quererem ser jornalistas logo que saiam da quarta classe. A TV estava cheia de jornalistas, os jornalistas casavam e eram capa de revistas cor-de-rosa e, já se sabe que os miúdos just wanna have fun. As universidades responderam e de dois ou três cursos com 100 ou 200 jornalistas por ano, o número multiplicou-se rapidamente por 10.

Distraída por todo este glamour, a maioria não prestou grande atenção a mudanças de fundo que iam acontecendo. As contas aumentavam, mas Portugal continuava a ter só 10 milhões de habitantes e num negócio gerido - como deve ser - por gestores profissionais alguns ratios deixavam de fazer sentido. Não se gasta ilimitadamente budget de publicidade, se o mercado não cresce proporcionalmente a esse investimento. Isto do lado do anunciante. Do lado dos media, a solução foi baixar os preços. Os primeiros porque eram grandes e achavam que podiam fazê-lo e sair ilesos, os outros todos porque já tinham uma pistola apontada a cabeça e não tinham opção. Os cheques das agências de meios tornaram-se mais curtos e os media começaram a sentir aquele fenómeno do gajo normal quando diz que há mês a mais para o seu ordenado. No caso dos media, passou a existir ano a mais para o cheque da compra por atacado. O negócio tornara-se financeiro e como em todo o negócio financeiro uma vez a crédito, sempre a crédito.

Ainda assim, o dinheiro não chegava. Gestores, jornalistas, técnicos, administrativos tornaram-se uma multidão para a receita cada vez mais curta (recordando: preços mais baixos na publicidade, preços ainda mais baixos na publicidade, vendas em bloco com descontos desproporcionados, preços de tabela fictícios que todos passaram a assumir significar - na vida real - 80 a 90% do valor fixado). Say what? Isso. E assim se foi seguindo mais uns anos com os mesmos vícios instalados, na dependência dos mesmos de sempre, pouca ou nenhuma aposta em novos modelos de negócio

Quando já não se conseguia disfarçar mais a conta, começaram as ditas medidas de ajustamento. As medidas não foram muito diferentes de outros sectores da economia. Se isto é um 'negócio de jornalismo' e se o 'jornalismo' não está a dar dinheiro, despedem-se jornalistas. Parece óbvio. Se continua a não dar certo, despedem-se mais jornalistas. Também se despedem designers, prescinde-se de centros de documentação (está tudo na internet, não está?), manda-se embora a telefonista (toda a gente tem mesmo telemóvel) e acaba-se com o paquete que já ninguém precisa de recados.

Faz-se isto tudo mas o raio do 'negócio do jornalismo' continua a não dar dinheiro. Nisto tudo, há uma coisa boa (não podia ser tudo mau, certo?): as universidades continuam a vomitar jornalistas encartados, e, maravilha suprema, há cada vez mais novos jonalistas encartados que dão tudo, mesmo tudo, por ter um microfone nas mãos e aparecer na TV. Até a custo zero.

Fez-se de tudo isto nos últimos 10 anos e a maré não virou. Nos últimos três anos, piorou significativamente. Ao ponto de terem de se incluir gestores entre os 'dispensáveis' desse negócio que não dá dinheiro. Quando se começaram a despedir gestores, as notícias sobre a crise dos media saltaram das páginas de sociedade ou das colunas esotéricas assinadas por tipos que se interrogam sobre o papel do jornalismo nas sociedades democráticas para os jornais de economia. E, nestes últimos três anos, os anos mais duros de todos os outros anos que já tinham sido duros, os gestores ficaram finalmente disponíveis para discutir novos modelos de negócio e para perceber realmente o que é afinal essa coisa do 'negócio do jornalismo'.

Ao dia de hoje, não se pode dizer que tenha sido ou que esteja a ser uma caminhada feliz. Mais uma vez, o alinhamento dos astros está longe de ser perfeito e esta disponibilidade dos gestores para a reflexão surge na era das métricas do online que aparentam transformar o jornalismo numa ciência exacta, medida em pageviews, CTR, shares e followers. E porque o diálogo entre gestores, jornalistas, designers e agora também tecnólogos continua tenso, difícil, àspero, os resultados são, na maior parte dos casos, pobres e exasperantes.

Um investidor quer ganhar dinheiro. Contrata gestores para lhe garantirem que entra mais dinheiro do que sai. O dinheiro vem das receitas. As receitas vêm - ainda demasiado - daquele negócio que falámos lá atrás e que foi destruído ao longo de uma década chamado publicidade. A publicidade hoje é medida ao clique. Se uma notícia tem muitos cliques, é uma boa notícia, certo? Se uma notícia tem poucos cliques, deve ser descontinuada. Se já percebemos que 'às bolinhas' funciona como notícia-com-muitos-cliques, devemos ter 'às bolinhas' todos os dias. Melhor, fazer 'às bolinhas' não é nada difícil, é só copiar o que o primeiro 'às bolinhas ' fez. 

Desculpem a caricatura. É injusta para alguns bons gestores que conheço. E acredito que cada vez mais o jornalismo terá de ser gerido por estes, os bons, o que compreendem a sua essência, os seus valores e a sua imprevisibilidade. Os que percebem que não há jornalismo sem jornalistas e que as marcas brancas no jornalismo não são jornalismo. Os congelados não são frescos.

Quem chegou até aqui, pode até ficar com a impressão que os jornalistas fizeram e fazem tudo bem. É uma impressão errada. Os jornalistas deviam ter-se preocupado mais cedo com perguntas tão básicas como 'quem nos paga o ordenado', 'de onde é que vem o dinheiro', 'como é que é feita a venda de publicidade'. O jornalismo de 'não-quero-nem-saber-de-onde-vem-o-dinheiro-porque-eu-sou-é-jornalista' não é ético, é irresponsável e potencialmente perigoso.

O New York Times, esse 'negócio de jornalismo' perigoso e cheio de jornalistas lá dentro, tem mostrado em vários momentos que ter receitas superiores aos custos não envergonha nenhum jornalista. Pelo contrário. É precisamente por ter receitas superiores aos custos que o NYT pode ser, nos tempos da mais amarga crise, um símbolo de esperança que bradimos quando queremos dizer que o jornalismo continua vivo. É por isso que discute sem complexos novas formas de ter receitas, como o formato de 'narrative advertising' que irá oferecer aos anunciantes. Num mundo em permanente versão beta sempre atrás da next big thing (youtube-facebook-twitter-instagram-tumblr-vine-snapchat...), há uma coisa que se mantém permanente. As empresas que produzem coisas continuam a precisar que as pessoas conheçam as coisas que produzem. Continuam a precisar comunicar e os media continuam a ser um meio privilegiado para falar com muitos, mesmo que hoje disputem esse território com estranhos e rivais. Também por isso nunca precisaram  tanto como hoje de ser criativos, corajosos e de ambicionar a independência que ter contas pagas nos traz (e que nunca mais virá só e tão somente da publicidade como a conhecemos durante décadas).

Ser independente não é um destino, é um caminho. E decide-se a cada passo, a cada decisão. Os jornalistas não podem mais estar à margem do 'negócio do jornalismo'. (ler sff Look, you're right, okay?= But you're also wrong

Sob pena de outros decidirem por eles e de passarem os próximos anos a queixarem-se que só os mandam fazer coisas 'às bolinhas'. 

Fight the good fight. 
Até breve"

sexta-feira, janeiro 24, 2014

Herberto Hélder*

[Anka Zhuravleva]

"O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia."

* em entrevista a Fernando Ribeiro de Mello, em 1964

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Al Berto, Canto do amigo morto


- quando as mãos encontrarem as mãos, e os olhos de um cegarem no fundo dos olhos do outro. recomeçaremos tudo. arrumaremos os objectos e a roupa nas gavetas. limparemos o soalho e o pó, as paredes e toda a casa. e ao abrir as janelas ao riso dos outros, vagarosamente, revelar-se-á uma réstia de alegria. aquela que não é possível partilhar a sós, aquela que necessita doutros corpos para que o mundo se ponha a existir à nossa volta, surpreendente, único, breve.depois, havemos de fumar um cigarro e olhar o mar. esqueceremos, nem que seja por um instante, a terra que me foi tragando ao longo dos anos. fingiremos a ordem para podermos refazer o caos.

no instante em que se torna possível contar todas as histórias do mundo, tu dirás (como se o tempo não fosse agora de cinza, como se o meu corpo ainda cantasse…):
    - vives como se vivesses por trás das palavras de um poema. existes se me amares.
    e eu direi:
    - dantes, eras uma visão. sentia uma luz acender-se na pele e eras tu. hoje, preparo e bebo venenos para que o brilho daquilo que já não és venha ao de cima, se solte do sangue e estremeça, cintile, e não se apague.
    tu:
    - o medo, o grande medo que se confunde com a serenidade, devora-te. e se nos tocarmos perderemos a inocência; ou talvez tu morras e eu ressuscite. mas uma coisa é certa: não nos cruzaremos, mais, estamos definitivamente sós. eu, enterrado. tu, respiras.
    eu:
    - quero morrer perto de ti, de nada me servirá morrer inocente.
    tu:
    - aqui, nesta treva, o que é que parou no tempo? as nossas vidas? a paisagem? o mar? do qual nunca soubemos a idade…
    eu:
    - quando sentia o teu corpo contra o meu ouvia, lá fora, a fúria do mar. era um presságio de felicidade, mesmo sabendo que só o mar das outras terras é que é belo.
    tu: 
    - continuas a escrever demais, matas tudo com as palavras. olha como eu te olho. olha para mim e cala-te. devias encher a caneta com tinta envenenada.
    eu:
    - o último deserto que me resta de ti é a noite da escrita. nela te mantenho vivo, amante morto. já não possuo bens e não prevejo herança nenhuma. vivo para a travessia do corpo que me sepultou na memória… o teu.
   tu:
   - aquele que se prepara para morrer tem que povoar a alma com tudo o que vai abandonar. não chegues aqui de coração vazio. é insuportável estar morto, sem nada que nos habite. a morte não admite distracções; por isso, a maior parte das pessoas não sabe morrer, desfaz-se.
    eu:
    - não há vergonha em dizer ou escrever isto: amo-te ainda.

segunda-feira, janeiro 20, 2014

domingo, janeiro 19, 2014

sábado, janeiro 18, 2014

Nymphomaniac by Lars von Trier ****


Muita gente espera um filme pornográfico. Eu esperava só uma história de solidão - e é isso que é.

Carlos Reis dos Santos: Carta aberta ao presidente da JSD e seus compagnons de route

[Andrew Wyeth]


[Saber-se hoje que a JSD não esteve sozinha no seu momento mentecapto (era previsível, mas enfim, nada como ter a certeza) só torna mais difícil entender as loas a Teresa Leal Coelho. A deputada do PSD era contra o referendo, mas não votou contra o referendo. Demitiu-se da direcção do grupo parlamentar que impôs disciplina de voto, mas não se demitiu da direcção do partido que partilhou com a jota a iniciativa do referendo. O parlamento existe para defender os cidadãos, mas os deputados do PSD (e do CDS) preferiram proteger os partidos (e a pele). A Assembleia da República é suposto ser a casa da democracia, mas revelou ser um albergue de ditadores. Um estudo indica que só 11% dos portugueses confia no Parlamento e 9% nos partidos. Porque será?! Aqui fica uma carta que vale tanto a pena ler. A prova de que na política portuguesa nada se progride, tudo se regride. Já agora, um número que vale a pena decorar: nove milhões de euros.]

Hesitei em decidir a quem me dirigir: não sei quem hoje é o mandante da JSD, nem a quem prestam vassalagem. Assim, terei de me dirigir ao presidente formal da JSD – e a quem deu publicamente a cara por uma das maiores indignidades que se registaram na história parlamentar da República.

Para vocês, que certamente não me conhecem, permitam-me que me apresente: sou militante do PSD, com o n.º 10757. Na JSD onde me filiei aos 16 anos, fui quase tudo: vice-presidente, director do gabinete de estudos, encabecei o conselho nacional, fui quem exerceu funções por mais tempo como presidente da distrital de Lisboa, fui dirigente académico na Faculdade de Direito de Lisboa, eleito com a bandeira da JSD, fui membro da comissão política nacional presidida por Pedro Passos Coelho, de quem, de resto, fui um leal colaborador. Quando saí da JSD, elegeram-me em congresso como vosso militante honorário.

Por isso julgo dever dirigir-me a vocês, para vos dizer que a vossa actuação me cobre de vergonha. E que deslustra tudo o que eu, e tantos outros, fizemos no passado, para a emancipação cívica, económica, cultural e política, da juventude e da sociedade.

Com a vossa proposta de um referendo sobre a co-adopção e a adopção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo, vocês desceram a um nível inimaginável, ao sujeitarem a plebiscito o exercício de direitos humanos. A democracia não deve referendar direitos humanos de minorias, porque esta não se pode confundir com o absolutismo das maiorias. Porque a linha que separa a democracia do totalitarismo é ténue – é por isso que a democracia não dispensa a mediação dos seus representantes – e é por isso que historicamente as leis que garantem direitos, liberdade e garantias andam à frente da sociedade. Foi assim com a abolição da escravatura, com o direito de voto das mulheres, com a instituição do casamento civil, com a autorização dos casamentos inter-raciais, com o instituto jurídico do divórcio, com o alargamento de celebração de contratos de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Estes direitos talvez ainda hoje não existissem se sobre eles tivessem sido feitos plebiscitos.

Abstenho-me de fundamentar aqui a ilegalidade do procedimento que se propõem levar avante: a violação da lei orgânica do referendo é grosseira e evidente – misturaram numa mesma proposta de referendo duas matérias diferentes e nem sequer conexas. Porque adopção e co-adopção são matérias que vocês pretendem imoralmente enfiar no mesmo saco.

Em matéria de co-adopção vocês ignoram ostensivamente o superior interesse das crianças já criadas em famílias já existentes e a quem hoje falta a devida segurança jurídica e protecção legal. Ao invés, vocês querem que os seus direitos sejam referendáveis. Confesso que me sinto embaraçado e transido de vergonha pela vossa atitude: dispostos a atropelarem o direito de umas poucas crianças e dos seus pais e mães, desprotegidos, e em minoria, em nome de uma manobra política. E isto é uma vergonha.

Mas é também com estupefacção que vejo a actual JSD tornar-se numa coisa que nunca foi – uma organização conservadora, reaccionária e atávica. Vocês empurram, com enorme desgosto meu, a JSD para uma fronteira ideológica em contradição com a nossa História e ao arrepio do nosso património de ideias e valores: o humanismo em matéria de liberdades individuais sempre foi nossa trave mestra. O que vocês propõem é uma inversão de rumo: conservadores na vida familiar mas liberais na economia. Eu e alguns preferimos o contrário. Porque o PSD, em que nos revimos, sempre foi o partido mais liberal em matéria de costumes e em matérias de consciência.

Registo, indignado, o vosso silêncio cúmplice perante questões sacrificiais para a juventude portuguesa. Não vos vejo lutar contra o corporativismo crescente das ordens profissionais e a sua denegação do direito dos jovens a aceder às profissões que escolheram. Não vos vejo falar sobre a emigração maciça que nos assola. Não vos vejo preocupados com muitas outras questões.

Mas vejo-vos a querer que eu decida o destino dos filhos dos outros.

Na JSD em que eu militei sempre fomos generosos: queríamos mais direitos para todos. Propusemos, entre tantas coisas, a legalização do nudismo em Portugal, o fim do SMO, a despenalização do consumo das drogas leves, a emancipação dos jovens menores e o seu direito ao associativismo. Nunca nos passaria pela cabeça querer limitar direitos.

Hoje vocês não se distinguem do CDS e alguns de vocês nem sequer se distinguem da Mocidade Portuguesa, ou melhor, distinguem-se, mas para pior.

A juventude já vos não liga nenhuma. E eu também deixei de vos ligar.

Jurista, militante do PSD n.º 10757 e militante honorário da JSD

[Hoje, no Público]

quinta-feira, janeiro 16, 2014

quarta-feira, janeiro 15, 2014

terça-feira, janeiro 14, 2014

Hollalândia


A propensão do jornalismo para indagar a vida amorosa dos políticos é muito intrigante. Por tudo, mas também porque parece ser inversamente proporcional ao interesse em monitorizar-lhes os delírios (os não eróticos). Hollande é uma brutal desilusão. Para França, suponho, e seguramente para a Esquerda. Não sei se para a Europa. Hoje estiveram 600 jornalistas no Eliseu. Aparentemente, o ponto mais empolgante da conferência era saber quem é a primeira dama que se segue... Cianeto, por favor!

If you would stay here with me, one more minute, I would steal the world




Well I’ve changed except my heart still beats too fast and my lungs still collapse and my legs still shake. I once thought love was real when we sat atop that hill and looked at cars below. We used to grow. You kissed me on the forehead and told me that you’d never let go. You told me that you’d love me until the end. Which begs the question, are we now dead? The person I thought I knew must be the person I once trusted until my bones rusted over in the snow we used to grow like the tallest tree in my background I used to know. Well happiness and joy and bliss, how it all disappeared so quick. So here’s to life and here’s to love. I’ve said it before, that I fade with the setting sun. 

My ears are still ringing from the sound of your broken heart, beating faster than thought, caught in your stare, so encompassing. All resolve is lost as words fall from your lips, my trembling fingertips held out in question. So shake hands with regret, set to slip away. Your eyes crossing, rivers flowing under your pale feet. As the moments count down to flames, meet and greet death, he wears a cloak of your hopes and dreams, quenched like the raging fire they were once. You’re the breath he never found; you are the closed eyes peacefully resting while those around you are torn to pieces. You’re the smoke I pull to escape from thought of you. No touch, no shadow cast into mind, your hand fervidly held at your side as memories of you flow through mine an empty space more lonesome for what it has lost. You’re the sunset smile thundering out of a careless moment, you’re the tightly closed fingers holding in a breath. If you would stay here with me, one more minute, I would steal the world.

Stefan Zweig: Amok


- O senhor sabe o que é o amok?
- Amok?... Creio recordar-me... é uma espécie de embriaguez... entre os malaios.
- É mais do que embriaguez.... é a loucura, uma espécie de raiva humana, literariamente falando...uma crise de monomania assassina e insensata, à qual uma intoxicação alcoólica não se pode comparar.

(...) O amok, eis o que é: um malaio, seja embora o melhor homem, mais cheio de doçura, absorve a sua bebida... está para ali apaticamente sentado, indiferente e sem energia... tal como eu estava sentado no meu quarto... de súbito, levanta-se, pega num punhal e sai para a rua... corre sempre em frente sem saber para onde... e quem passar no seu caminho, homem ou animal, ele abate-o com o seu kriss e o cheiro do sangue torna-o ainda mais violento... Enquanto corre, os lábios enchem-se-lhe de baba e urra e como um possesso... mas corre... corre sempre... sem ver nada do que lhe fica à direita ou à esquerda, correndo sempre, soltando o seu grito penetrante e segurando na mão, durante essa correria, o kriss ensanguentado... As pessoas da aldeia sabem que nenhum poder no mundo pode fazer parar esse homem assaltado por uma crise de loucura sanguinária... e quando o vêem, gritam, o mais longe que podem, a sinistra palavra: "Amok!, Amok!" e todos fogem... Mas ele, sem nada ouvir, prossegue na sua carreira, correndo sem ver ninguém e continuando a matar o que encontra... até que o abatem como a um cão danado, ou cai inanimado, espumando...

[Amok (...) é o inferno da paixão no fundo do qual se retorce, queimado mas eliminado pelas chamas do abismo, o ser essencial, a vida oculta.]

segunda-feira, janeiro 13, 2014

So why don't you love me back?

Bagão Félix: Falácias e mentiras sobre pensões

[Alex Stoddard]

Escreveu Jean Cocteau: “Uma garrafa de vinho meio vazia está meio cheia. Mas uma meia mentira nunca será uma meia verdade”. Veio-me à memória esta frase a propósito das meias mentiras e falácias que o tema pensões alimenta. Eis (apenas) algumas:

1. “As pensões e salários pagos pelo Estado ultrapassam os 70% da despesa pública, logo é aí que se tem que cortar”. O número está, desde logo, errado: são 42,2% (OE 2014). Quanto às pensões, quem assim faz as contas esquece-se que ao seu valor bruto há que descontar a parte das contribuições que só existem por causa daquelas. Ou seja, em vez de quase 24.000 M€ de pensões pagas (CGA + SS) há que abater a parte que financia a sua componente contributiva (cerca de 2/3 da TSU). Assim sendo, o valor que sobra representa 8,1% da despesa das Administrações Públicas.

2. Ou seja, nada de diferente do que o Estado faz quando transforma as SCUT em auto-estradas com portagens, ao deduzi-las ao seu custo futuro. Como à despesa bruta das universidades se devem deduzir as propinas. E tantos outros casos…

3. Curiosamente ninguém fala do que aconteceu antes: quando entravam mais contribuições do que se pagava em pensões. Aí o Estado não se queixava de aproveitar fundos para cobrir outros défices.

4. Outra falácia: “o sistema público de pensões é insustentável”. Verdade seja dita que esse risco é cada vez mais consequência do efeito duplo do desemprego (menos pagadores/mais recebedores) e - muito menos do que se pensa - da demografia, em parte já compensada pelo aumento gradual da idade de reforma (f. de sustentabilidade). Mas porque é que tantos “sábios de ouvido” falam da insustentabilidade das pensões públicas e nada dizem sobre a insustentabilidade da saúde ou da educação também pelas mesmas razões económicas e demográficas? Ou das rodovias? Ou do sistema de justiça? Ou das Forças Armadas? Etc. Será que só para as pensões o pagador dos défices tem que ser o seu pseudo “causador”, quase numa generalização do princípio do poluidor/pagador?

5. “A CES não é um imposto”, dizem. Então façam o favor de explicar o que é? Basta de logro intelectual. E de “inovações” pelas quais a CES (imagine-se!) é considerada em contabilidade nacional como “dedução a prestações sociais” (p. 38 da Síntese de Execução Orçamental de Novembro, DGO).

6. “95% dos pensionistas da SS escapam à CES”, diz-se com cândido rubor social. Nem se dá conta que é pela pior razão, ou seja por 90% das pensões estarem abaixo dos 500 €. Seria, como num país de 50% de pobres, dizer que muita gente é poupada aos impostos. Os pobres agradecem tal desvelo.

7. A CES, além de um imposto duplo sobre o rendimento, trata de igual modo pensões contributivas e pensões-bónus sem base de descontos, não diferencia careiras longas e nem sequer distingue idades (diminuindo o agravamento para os mais velhos) como até o fazia a convergência (chumbada) das pensões da CGA.

8. “As pensões podem ser cortadas”, sentenciam os mais afoitos. Então o crédito dos detentores da dívida pública é intocável e os créditos dos reformados podem ser sujeitos a todas as arbitrariedades?

9. “Os pensionistas têm tido menos cortes do que os outros”. Além da CES, ter-se-ão esquecido do seu (maior) aumento do IRS por fortíssima redução da dedução específica?

10. Caminhamos a passos largos para a versão refundida e dissimulada do famigerado aumento de 7% na TSU por troca com a descida da TSU das empresas. Do lado dos custos já está praticamente esgotado o mesmo efeito por via laboral e pensional, do lado dos proveitos o IRC foi já um passo significativo.

11. Com os dados com que o Governo informou o país sobre a “calibrada” CES, as contas são simples de fazer. O buraco era de 388 M€. Descontado o montante previsto para a ADSE, ficam por compensar 228 M€ através da CES. Considerando um valor médio de pensão dos novos atingidos (1175€ brutos), chegamos a um valor de 63 M€ tendo em conta o número – 140.000 pessoas - que o Governo indicou (parece-me inflacionado…). Mesmo juntando mais alguns milhões de receitas por via do agravamento dos escalões para as pensões mais elevadas, dificilmente se ultrapassam os 80 M€. Faltam 148 M, quase 0,1% do PIB (dos 0,25% que o Governo entendeu não renegociar com a troika, lembram-se?). Milagre? “Descalibração”? Só para troika ver?

12. A apelidada “TSU dos pensionistas” prevista na carta que o PM enviou a Barroso, Draghi e Lagarde em 3/5/13 e que tinha o nome de “contribuição de sustentabilidade do sistema de pensões” valia 436 M€. Ora a CES terá rendido no ano que acabou cerca de 530 M€. Se acrescentarmos o que ora foi anunciado, chegaremos, em 2014, a mais de 600 M€ de CES. Afinal não nos estamos a aproximar da “TSU dos pensionistas”, mas a … afastarmo-nos. Já vai em mais 40%!

13. A ideologia punitiva sobre os mais velhos prossegue entre um muro de indiferença, um biombo de manipulação, uma ausência de reflexão colectiva e uma tecnocracia gélida. Neste momento, comparo o fácies da ministra das Finanças a anunciar estes agravamentos e as lágrimas incontidas da ministra dos Assuntos Sociais do Governo Monti em Itália quando se viu forçada a anunciar cortes sociais. A política, mesmo que dolorosa, também precisa de ter uma perspectiva afectiva para os atingidos. Já agora onde pára o ministro das pensões?

P.S. Uma nota de ironia simbólica (admito que demagógica): no Governo há “assessores de aviário”, jovens promissores de 20 e poucos anos a vencer 3.000€ mensais. Expliquem-nos a razão por que um pensionista paga CES e IRS e estes jovens só pagam IRS! Ética social da austeridade?

[Hoje, no Público]


sábado, janeiro 11, 2014

Clara Ferreira Alves: Uma carreira J(an)ota


[Hoje, no Expresso]

"É jovem? Ambicioso? Pouco dado aos estudos? Está farto daqueles cursos mixurucas que não dão para mandar cantar um cego? Gosta de marketing e aprecia comunicação? Temos a solução adequada ao seu caso. Somos, nós, consigo, o futuro. O nosso nome é PSD, o partido ideal ao seu perfil. Damos-lhe, sem trabalho e sem esforço, usando o seu talento natural, extraindo os melhores resultados da sua facilidade comunicacional, possibilidades de desenvolver uma carreira política que o poderá conduzir aos mais altos cargos de governo de nação. Temos nas nossas fichas casos de sucesso que o farão decidir num ápice.
(...)
Connosco no poder, que chega pelo menos de quatro em quatro anos, pode até subir a ministro, primeiro-ministroo, comissário ou deputado europeu, o que quiser. Os privados acenar-lhe-ão, motivados pelo seu privilégio, servilismo e acesso ao chefe. Requisitos? Um diploma válido, mesmo de uma universidade para imbecis, por causa das chatices com jornalistas. Não garantimos inscrições na maçonaria mas ajudamos no emprego da família e amigas íntimas. Secretária e motorista incluídos."

sexta-feira, janeiro 10, 2014

quinta-feira, janeiro 09, 2014

Francisco Assis sobre Manuel Seabra

[Alex Stoddard]

“Contra tudo o que é estrangeiro podemos encontrar segurança, mas a morte faz que todos nós, homens, habitemos uma cidade sem defesa." Epicuro, num curto e belíssimo texto sobre o tema da amizade, incluído no livro intitulado O Hipopótamo de Deus, José Tolentino de Mendonça traz-nos ao conhecimento um provérbio inglês de invulgar expressividade: “ Viver sem amigos é morrer sem testemunhas”.

Esta afirmação é de uma densidade prodigiosa, já que remete da solidão irremediável da morte para a natureza diversa das vidas. Ocorreu-me recuperá-la neste instante especialmente doloroso em que me vejo confrontado com a vontade, e a dificuldade, de evocar um amigo morto. Não um amigo qualquer mas o mais próximo dos últimos anos. De súbito, quando a razão parece estar prestes a despenhar-se num abismo de escuridão e silêncio, a recordação das palavras de um grande pensador e poeta permite-nos encontrar um caminho para falar do que parecia indizível: a perda de um amigo profundamente digno. Resta-me, pois, apresentar o meu testemunho sobre o Manuel Seabra, cidadão empenhado, jurisconsulto e político que morreu na semana passada.

Uma lapidar biografia institucional remete-nos para a enunciação de um percurso factualmente verificado. Manuel Seabra foi vereador e presidente da Câmara de Matosinhos, integrou diversos órgãos dirigentes do PS, incluindo o próprio Secretariado Nacional, e desempenhou durante os últimos quatro anos as funções de deputado na Assembleia da República. Ocupou todos estes cargos de forma exemplar deixando um lastro de seriedade, competência e lisura. Valorizava o estudo, cultivava o rigor e pautava-se por critérios de elevada exigência intelectual. Dito isto, que já não é pouco, o essencial fica ainda por dizer.

Manuel Seabra foi sobretudo um homem livre que combateu com mais convicção do que gosto e que nunca abdicou de uma atitude tolerante e solidária. Por detrás da sua permanente bonomia havia um carácter forte e insubmisso, pronto a lutar quando isso se impunha, disposto a concordar quando tal se revelava possível. Essa força interior impeliu-o a tomar decisões de inegável coragem que lhe abriram, simultaneamente, as portas do reconhecimento e da incompreensão. Não tinha o hábito de evitar as incomodidades e nunca claudicava na defesa daquilo em que verdadeiramente acreditava. A sua generosa compreensão das debilidades humanas tinha, porém, um limite – abominava tudo o que era medíocre, pequeno e vil. Por isso o víamos a ele, que era um ser de temperamento solar, a reagir com alguma brusquidão perante manifestações daquela natureza. Agindo dessa forma deu um inestimável contributo para a renovação da vida partidária provocando transformações destinadas a perdurar no tempo. Num país onde ainda parece preponderar a gramática da obediência ardilosa, que prefere a dissimulação à clarificação, el e ousou várias vezes seguir pelo caminho mais difícil. Quando teve de romper, rompeu, quando achou que deveria partir, partiu. Pagou por isto um preço muito elevado quando foi vítima de uma tentativa de silenciamento político. Nessa ocasião optou pela via da dignidade e afastou-se por uns tempos da política activa refugiando-se na prática da advocacia, profissão que aliás o apaixonava. Voltou quando o foram buscar.

Exerceu com especial alegria a função de deputado. Homem inteligente e culto, apreciava o debate, percebido como fecunda interacção de inteligências divergentes. Por isso mesmo era tão incisivo quanto tolerante, tão duro na retórica quanto aberto à compreensão das razões dos outros. Não era um dogmático, cultivava um pragmatismo exigente. Daí que tivesse amigos em todos os quadrantes políticos, decerto sensíveis à sedução do seu humor inteligente. Só num assunto assumia as vestes de um fanático, na exaltação da sua paixão benfiquista.

Fará falta ao país, ao Parlamento e ao PS. Subsistirá como uma memória constante no círculo dos seus amigos, que eram muitos, e que jamais esquecerão que o Manuel Seabra seguia exemplarmente uma outra afirmação, também contida no já referido livro, esta da autoria de Séneca: “Ter um amigo é ter alguém por quem morrer”. Estamos a sair de uma época em que com relativa banalidade os homens se dispunham a morrer por ideias abstractas; infelizmente também se dispunham com relativa facilidade a matar em nome delas. Para não cairmos agora no vazio de um egoísmo radical precisamos de regressar a essa longínqua afirmação de Séneca. Há muitas formas de morrer por um amigo. Manuel Seabra correu muitos riscos em nome desse valor superior da amizade. Isso distinguia-o e elevava-o a uma categoria muito rara na nossa vida pública. Confrontados com a dor da sua morte talvez possamos encontrar algum conforto numa derradeira citação de José Tolentino Mendonça:  “Porventura o mais fecundo não está na pergunta ‘Porque é que eles partiram?’, mas nessa outra que levaremos a vida a responder, e sempre em total gratidão: ‘Porque é que eles vieram?’.”

[Hoje, no Público]

Knut Hamsun: Mistérios


"Quando chega a hora da verdade, não são sempre os grandes e gordos zeros que fazem a diferença no total?

Para o raio com os teus zeros. Ponto final. Ficas cheio até à ponta dos cabelos com tanta falsidade e não o consegues aguentar mais. Vais até à floresta e deitas-te sob o céu aberto, onde há mais espaço para aqueles que são estranhos entre os homens e para os pássaros que voam. E um local húmido serve como cama, deitas-te de barriga para baixo no chão pantanoso e retiras prazer em ficar completamente encharcado. E afundas a cabeça em juncos e folhas ensopadas e coisas rastejantes, e macios e pequenos lagartos rastejam pela tua roupa até ao teu corpo e olham para ti com os olhos verdes aveludados; estás rodeado pelos suaves sopros de vento e das árvores, enquanto Deus, no alto, senta-se a observar-te - tu, a ideia mais fixa de todas as suas ideias! O teu humor começa a melhorar e passas a sentir uma estranha alegria diabólica que nunca antes sentiste. Vais até ao extremo da loucura - misturas o certo e o errado, viras o mundo ao contrário; estás tão eufórico como se tivesses acabado de fazer uma boa acção. E porque não? Cedes a poderes que te são superiores, entregas-te a eles e deixas-te levar por fantasias, por uma indulgência cruel no prazer. Tens uma vontade irresistível de glorificar tudo o que antes insultavas, exultas ao pensar em ordenar a paz universal, gostarias de formar um comité para melhorar o calçado dos carteiros, elogiarias Pontus Wikner e farias questão de defender Deus e o universo. Para o diabo com a ideia da inter-relação entre todas as coisas, pois isso já não te diz respeito. Vaias e até fazes escárnio, e a coisa fica por aí. Oh, e o sol brilha! Deixa-te levar, afina a tua harpa e canta salmos como nunca antes foram cantados!

E, logo a seguir, deixas-te flutuar calmamente em ventos e ondas, tornando-te alvo de torrentes idiotas de pensamentos. Deixa a mente divagar, sabe tão bem ceder, parar de lutar. E por que razão lutar? Um viajante que deixou de viajar não deveria ter direito a fazer o que quer nos seus últimos momentos? Sim ou não? Ponto final. E fazes o que o teu espírito manda."

quarta-feira, janeiro 08, 2014

José Eduardo Martins: Envelhecimento global


O ano das surpresas começou sem nenhuma. O Governo escolheu, outra vez, o caminho fácil para executar o roteiro que o Presidente também fez seu.

Já não é uma questão de confiança, certeza, crença ou sequer fé. O objectivo é cumprir, dê por onde der, a aparência do Programa de Assistência Económica e Financeira, filho da bancarrota socialista.

Pouco importa já se a austeridade funciona ou não. Foi o que o PS nos fez assinar, foi o que este Governo quis e, agora, vamos todos jogar este jogo de faz de conta que corre bem a ver se o anunciado e inevitável "programa cautelar" permite começar a pensar outra vez. Ou pela primeira vez, consoante a perspectiva.

Como sói dizer-se, o Governo optou por morder a bala. A maldição de Gaspar já só paira como sombra para as memórias menos gastas. Nas suas palavras, o programa falhou o objectivo central da redução estrutural do "deficit" e da dívida pública. A reforma do Estado não se fez… 

Mas agora, chamam-se duradouras a medidas estribadas em contribuições ditas extraordinárias e o Presidente desdiz os seus anteriores pruridos constitucionais sobre confiança e proporcionalidade. Está bem. Que estes seis meses passem depressa enquanto a Europa está disponível para sinalizar que nos manda a botija. Seja. Morda-se a bala, espere-se ainda mais, mas não nos ofendam com a retórica bacoca da reforma ou da convergência para caracterizar o que andam a fazer com os reformados.

Andamos assustados por tantas mudanças que não esperávamos ver na vida e pensar na velhice é seguramente das tais coisas que exigem, dos políticos, a maior franqueza e cuidado.

Manuel Villaverde Cabral caracteriza bem a situação: um "paradoxo do envelhecimento", em que o aumento generalizado da esperança de vida, acompanhado de baixa natalidade e fraco crescimento pode abalar toda a estrutura da sociedade e das relações entre os seus grupos etários.

Além dos riscos associados ao prolongar da vida, cada vez mais isolada e menos vivida em família, parece inevitável que a insustentabilidade dos sistemas de segurança social e de saúde farão agravar o fosso entre gerações muito além do que a competição pelo trabalho. 

No seu brilhante primeiro romance, Bruno Vieira Amaral, escreve sobre "pais encavernados, mas que agora podiam exibir os filhos saudáveis e letrados, prova de que tinham chegado à superfície (…) e tinham-lhes dado bons netos, que orgulho, a vida de formiga para ver chegar aqueles netos".

É, também, a história da mobilidade social que os filhos e netos que aqui escrevem sabem de cor. É a história, hoje irrepetível, da sociedade portuguesa na segunda metade do século XX. 

Hoje, estamos, isso sim, confrontados com a pergunta de Norman Daniels: "Am I my parents keeper?" Vamos no futuro tomar conta dos nossos pais? Como vamos fazer isso ao mesmo tempo que criamos os filhos? E se as pensões vão mesmo minguar, para usar um grande eufemismo, que vai ser de nós quando velhos? A resposta deve ser encontrada na família?

A resposta é não: o envelhecimento global precisa de uma resposta política. De um contrato entre gerações. As muitas hipóteses sérias e até bastantes divergentes – modular montantes de pensões sobre o último salário, relacionar isso com a esperança média de vida, discutir a utilidade do plafonamento – não deviam ser mais adiadas. 

E tudo isto ainda seria pouco, face à ausência de verdadeiras políticas integradas para lidar com o envelhecimento que será marca central do nosso futuro. Em vez disso, vão mais de dois anos em que o Governo cobre a escassez, sacrificando quase sempre os mesmos, usando uma retórica de reforma num sector onde só cuidou de vender remendos. 

Pode isto ser pior? Pode. A ideia, a única, do PS e da oposição em geral é nada fazer. Aumentar a dívida… novamente não há surpresas. E tanto precisávamos delas. 

[Hoje, no Jornal de Negócios]

terça-feira, janeiro 07, 2014

I dreamed...



[Maravilhoso, André! Obrigada.]

Rafael Kyrychenko



O apelido parece russo, mas Kyrychenko é português. Dos Açores. Ainda não fez 18 anos, soma prémios desde os nove e estreia-se hoje na Casa da Música, às 21h. Oportunidade para ver uma promessa.

Programa 
Domenico Scarlatti: Sonata L33 
Ludwig van Beethoven: Sonata op.57, Appassionata 
Johannes Brahms: Duas rapsódias Op.79 
Sergei Rachmaninoff: Variações sobre Tema de Corelli

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Idade não é doença


Não gostava de chegar aos 89 anos. Espero não chegar. Mas espero que o pai, que conta quase 76, não só chegue aos 89 anos, como os ultrapasse com grande estilo e alcance os cem, tal como me prometeu. O pai é uma espécie de deus, mas tem pés de barro, como todos nós. A nossa vida, minha e dele, era mais fácil quando sugava tudo o que dizia sem nunca dele discordar. O pai tinha sempre razão, ou assim me parecia. E tinha tudo para ensinar, tinha sempre a frase certa, estava sempre do lado certo das coisas, como só os homens bons. Sem o pai, não seria quem sou: não ainda uma pessoa boa, mas uma pessoa que não desiste de tentar ser boa. E justa e séria. Que quer estar do lado certo da vida. O pai não deixou de ser bom quando começámos a discordar. O pai ganhou idade e perdeu filtros. Já não escolhe as palavras, já não pensa duas vezes antes de falar. Às vezes corre mal e isso chateia. Mas continua a ser uma espécie de deus, homem bom como é raro encontrar-se. E eu preferia que ele vivesse para sempre, mesmo sem filtros e irritando-me de vez em quando, do que tê-lo perdido quando ainda não discordava dele. O pai, mais velho que eu quarenta anos, ensinou-me só pela circunstância de ser mais velho, a respeitar as pessoas mais velhas. Respeitei sempre, desde pequenina. Pela simples razão de que não gostaria que alguém desrespeitasse o meu pai. Entranhou-se-me esse respeito. Perco em espírito crítico o que ganho em tolerância. E ainda bem. Não me custa a aceitar que critiquem Mário Soares, mas custa-me muito a aceitar que o insultem. Custa-me mesmo muito e não significa que esteja sempre de acordo com ele ou com as palavras que escolhe para dizer o que poderia dizer de outra forma, mais polida, menos passível de ferir susceptibilidades. Custa-me que digam que está senil. Eu seria capaz de matar quem proferisse o mesmo insulto sobre o meu pai. A idade não é uma doença, exige respeito. É muito triste ver que quem exige respeito a Mário Soares não é capaz de respeitá-lo. 

domingo, janeiro 05, 2014

Eusébio 1942-2014



Uma tragédia, por Miguel Esteves Cardoso

Primeiro, não se acredita. Eusébio morto? Como é que pode ser? Depois acredita-se e amaldiçoa-se o azar de Eusébio e da família dele por ele ter morrido tão cedo.

Percebe-se que Eusébio já era um imortal há muito tempo e que, nesse sentido heróico, continua tão vivo como antes. Foi uma imortalidade que ele criou, jogada a jogada, de jogo em jogo, ano após ano, de golo em golo.

Mas Eusébio faz falta. Ele era um sábio e um benfeitor, um monumento vivo que falava com as pessoas e vivia como elas, no meio da gente. Era a última grande figura de Lisboa.

Os portugueses nem sempre trataram Eusébio com o respeito e a gratidão que ele não só merecia como tinha conquistado, apesar de ter enfrentado obstáculos formidáveis.

Eusébio era um senhor a jogar e era um senhor na vida. As grandes qualidades dele como futebolista - a inteligência, a imaginação, a solidariedade, a elegância e a audácia - nunca mais se juntaram num só jogador. Mas continuaram sempre na pessoa de Eusébio, ao lado de fraquezas que todos nós temos, provando que ele era humano.

É uma grande tristeza Eusébio não ter vivido mais anos de felicidade e de exemplo. São muitas as pessoas, de todas as idades e de todas as profissões, cujas vidas vão piorar por Eusébio já cá não estar.

A morte de Eusébio é uma tragédia. As tragédias choram-se. Não se celebram. A imortalidade já era dele. Não serve de consolação nenhuma. Era imortal e bem vivo que te queríamos, querido Eusébio.

Obrigados por tudo o que nos deste, a começar por ti.

sábado, janeiro 04, 2014

Maria Teresa Horta

[Alex Stoddard]
HELENA

Ela caminha

por entre as ruinas

de Troia

Deixando pousar em tudo 
o seu olhar febril

de ametista rosada

Onde está o fio da espada
que retalhou
o peito de Heitor? - quer saber

Arrastando consigo
a culpa atormentada

sexta-feira, janeiro 03, 2014

quinta-feira, janeiro 02, 2014