quinta-feira, junho 30, 2011

No respect

Não é possível respeitar o jornalismo que não respeita a vida das pessoas. Sem se dar ao respeito, o jornalismo não serve para nada.

Maria Filomena Mónica: A morte

segunda-feira, junho 27, 2011

Manicómio


Encerraram o manicómio. Fecharam as portas a cadeado, limparam o interior da casa, queimaram os fantasmas, destruíram as algemas, os coletes de forças, a medicação. Despediram os seguranças e os enfermeiros. A vigília em permanência. Estavam curados. Nunca mais precisariam de voltar àquele lugar onde durante o que pareceu uma eternidade cuspiram ciúmes como espadas e acusações e veneno, doentia possessão, perseguição, onde jorraram insegurança e sangue até à anemia mental. Era quase um milagre. Nunca ninguém acreditou que sairiam dali. Vivos. Mas saíram. Sem resquícios de distúrbios e sem sequelas. E passaram anos, muitos. De felicidade total, quase infantil, irreal. Os cientistas nunca o conseguiram explicar. Não havia modelos, tabelas, sistemas que compreendessem por que razão, primeiro, nunca aceitaram separar-se, e depois, aquela mudança que pela sua dimensão abolira todo o passado de internamento. De prisão. Eles, sempre a sombra um do outro, no céu e no inferno. Sem cansaço nem tédio nem desejo de fuga. Quem saberia explicar? Cresceram sebes em torno das portas, das janelas daquela casa assombrada por sofrimento. O som constante de um choro fininho desapareceu; o silêncio, mais pesado que o choro, também. As noites voltaram desprovidas de pesadelos; os dias habitados por gargalhadas. Era para sempre. E depois, de repente, voltou tudo outra vez, como uma tempestade em dia de sol. 

domingo, junho 26, 2011

sábado, junho 25, 2011

Deixa que a vida te despenteie


Fazer amor, despenteia. Rir às gargalhadas, despenteia. Viajar, voar, correr, entrar no mar, despenteia. Tirar a roupa, despenteia. Beijar a pessoa que se ama, despenteia. Brincar, despenteia. Cantar até ficar sem ar, despenteia. Dançar até duvidar se foi boa ideia colocar aqueles saltos gigantes, deixa o cabelo irreconhecível. É a lei da vida: estará sempre mais despenteado quem decidir ir no primeiro carrinho da montanha russa do que aquele que decide não subir. Entrega-te. Come coisas boas. Beija. Abraça. Dança. Apaixona-te. Relaxa. Viaja. Salta. Adormece tarde. Acorda cedo. Corre. Voa. Canta. Acima de tudo, deixa que a vida te despenteie. O pior que pode acontecer é que, ao passares pelo espelho, precises de pentear-te outra vez.

sexta-feira, junho 24, 2011

I can't make you love me



Turn down the lights. turn down the bed, turn down these voices inside my head. Lay down with me, tell me no lies, just hold me close, don't patronize. Don't patronize me. Because i can't make you love me. If you don't. You can't make your heart feel something it won't. Here in the dark, in these final hours, iwill lay down my heart and I'll feel the power, but you won't. No, you won't. Because i can't make you love me if you don't. I'll close my eyes, then I won't see the love you don't feel. When you're holding me. Morning will come and I'll do what's right. Just give me till then to give up this fight. And I will give up this fight.

quinta-feira, junho 23, 2011

Miguel Esteves Cardoso: Último volume


Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?

As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.

É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.

Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.

Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.

O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

De coração partido...

Estivemos alguns meses na fase do engate. Havia trocas de olhares, pequenas carícias e alguns sinais de uma académica um pouco diferente de um clube que luta para não descer.

Em conversa, descobrimos um passado em comum. Recordámos as muitas tardes e noites passadas na Superior Sul do Estádio das Antas. Falámos de Bobby Robson como um grande ídolo. Comparámos as nossas histórias de amor. Era evidente para todos: fomos feitos um para o outro.

O namoro começou há um ano. A família desconfiava dele, não o conhecia de lado nenhum, e até tinha ar de engatatão. Mas depressa lhes deu a volta. Convenceu-os que me iria amar para sempre e que eu era a namorada de sonho.

O Verão até começou com um passeio romântico em Aveiro, uma Supertaça que iria marcar a nossa relação. A fase da paixão prolongou-se: 5-0 no clássico, vitórias sucessivas na Europa, os outros casais não tinham vida para nós. Casámos de luz apagada na luz, tivemos filhos em Dublin e já imaginava a minha vida toda com os Aliados pintados de azul. E, depois, isto.

De um dia para o outro, deixaste-me. Sem dizer nada, apenas com um fax. Trocaste-me por uma idiota russa cheia de dinheiro, muito mais feia e gorda do que eu. E eu por cá fiquei, de coração partido, com memórias de um casamento curto mas tão feliz, e com um rancho de filhos valiosos que poderão ir atrás de ti.

Durmo mal, penso no que fiz para isto acontecer, não consigo entender o porquê. Poderias ter sido o amor da minha vida, mas, afinal, vais ser só mais um que me enganou. Estás contente? Estás feliz? Não acredito. Ela não é melhor do que eu. Para ela, serás só mais um capricho. Ela não gosta de ti como eu gostava.

Mas sabes que mais? Não quero saber. Vou ultrapassar isto num instante e andar para a frente. Sei que mereço melhor e que ainda vou ser muito feliz. Não me peçam é para me apaixonar já outra vez. Isto vai demorar.

O melhor texto de sempre sobre o que nos aconteceu, aqui. 

Vergílio Ferreira

Nunca mais nos veremos? Perguntei com a estupidez de quando não há perguntas a fazer. Mas ao mesmo tempo, por baixo da minha insensatez, eu sentia o impulso absurdo de recuperar uma irrealidade perdida. Nunca mais? E imprevistamente era aí que eu repousava, na tua face, na imagem final do meu desassossego.
Vergílio Ferreira in "Na tua face"

X

Sometimes I can hear my bones straining under the weight of all the lives I’m not living.
Jonathan Safran Foer

quarta-feira, junho 22, 2011

Love is the warmest place to be when it's cold outside



IX


What this power is I cannot say;
all I know is that it exists and it becomes available
only when a man is in that state of mind in which he knows exactly what he wants
and is fully determined not to quit until he finds it.

terça-feira, junho 21, 2011

3D


Eram 4h37 da madrugada quando da janela da cozinha avistou a silhueta da mulher, timbre trémulo e triste a pedir ao porteiro: "Importa-se de me abrir o portão?" Ele, idade outonal, mudo na farda azul, a fazer de conta que não lhe conhece melhor a voz que o rosto, a fazer de conta que passava ali naquele preciso instante por acaso e não porque há mais de duas horas vigiava os ecos da gritaria que ela, alheada das horas e dos vizinhos, fazia verter do rés-do-chão - ela a berrar: "Larga-me! Larga-me, cabrão!" -, tirou pausadamente as chaves da algibeira numa lentidão que pretendia punir quem aguardava a saída e abriu-lhe o portão. A mulher saiu. Ninguém a seguiu. Terá 40 anos, talvez menos, leva os caracóis castanhos em desalinho, a roupa torcida, o corpo suado, cansado da porrada. É assim todos os fins-de-semana. Vem ver o namorado, o amante, traz malas empertigadas apoiadas em rodinhas, um sorriso de saltos altos, vem para ficar uma dia, talvez dois. Sai invariavelmente a meio da primeira noite com um rasto de móveis tombados, atirados contra a parede, louça partida, a porta do apartamento a bater, a abrir e a fechar vezes sem conta antes da fuga derradeira. E o mesmo discurso, em loop, aparentemente imune ao desgaste da semana anterior, intercalado com palavrões, muitos -  "Eu para ti morri, ouviste meu filho-da-puta? Morri!"; "Deixa-me sair, se não sair vou gritar! Deixa-me saiiiir, caralho!"- e a incredulidade - "Estás-me a bater?! Bate-me, cabrão! Bate-me, bates-me porque és cobarde, és um cobardolas!" - e a ameaça - "Nunca mais me pões a vista em cima, nunca mais!" E o nunca mais dura até à semana seguinte.

No andar de cima, a luz está acesa. Não era preciso, a lua está quase cheia no rescaldo do eclipse, ilumina tudo. Mas há várias luzes acesas no prédio, uma inevitabilidade quando aquela mulher franzina, bonita, misteriosa, visita o condomínio, o namorado, o amante. Já houve queixas, já houve polícia, já houve ameaças, a colher que separa o homem da mulher teme que um dia o caso acabe mal. Mas ela, e ele com ela, resistem a tudo. Sem mudar um milímetro. Pouco a pouco, as luzes vão-se apagando. No andar de cima, o cão, um Labrador amarelo de natureza e longevidade, que há pouco corria desaustinado pelo soalho, inquieto e previdente, adormece. Ou assim parece. A televisão faz aquele som de desligar, apesar de muito provavelmente ter estado em mute nas duas últimas horas. E os donos vão ou voltam à cama. A cama começa a ranger, primeiro devagar, depois mais depressa, sincronizada. Há gritos outra vez. E já é dia. O dia começa às 5h10.

Ela assiste a tudo, o som quando é alto chega em imagens 3D. Ao lado, o inverso, nenhum som, uma paz absoluta, ele continua imperturbável, embrulhado num sono profundo, num sorriso cristalizado que imita a realidade acordada, ignorando tudo aquilo em que não crê. Ao vê-lo assim ali, sábio, sereno e incorruptível, tão pouco terreno, não conseguiu deixar de pensar: Amo-te, caramba! Quando ambos acordarem, terão passado dez anos. 

segunda-feira, junho 20, 2011

Obviamente, um confronto (em Vancouver)

[AFP/Getty Images, Rich Lam]

domingo, junho 19, 2011

sábado, junho 18, 2011

Joshua Ferris: The unnamed


Aproximou-se, esticou o braço e tocou-lhe na face. Não queria que ela o tivesse feito, mas não se mexeu. Tentou não pensar no aspecto que teria, em como ela o iria achar. Olhou-a brevemente nos olhos, mas desviou logo o olhar. Não queria interpretar a emoção no rosto dela. Não queria reparar de novo  nos pormenores da sua face ou na forma como se harmonizavam para a tornar bela. Não queria saber de que modo ela envelhecera ou não envelhecera ou o que vestia, se era alguma coisa antiga ou algo que ele não reconheceria. Não queria estar tão próximo que conseguisse sentir o seu perfume. Era aquele ténue mas inequívoco aroma, e os olhos claros e as sardas que anunciavam a sua inimitável pessoa e que o chamavam de volta para tudo o que amava no mundo.

(...) Escutou o estremecimento na voz dela. Encolheu os braços. Colocou as mãos juntas debaixo da mesa, longe do alcance dela. Não tardou a dar-se conta da sensação-fantasma, residual, das mãos dela. As vantagens que o outro tinha sobre ele, vantagens que tornavam a fome torturante, a dor vigilante e o toque de uma mulher envolto em memórias de amor mais insuportáveis do que todas as restantes dores em conjunto, insuperáveis. 

sexta-feira, junho 17, 2011

Rasgar a ficção

[Paulo Nozolino]

Adormeceu grávida de sonhos e satélites. Acordou com um elefante na garganta do coração. Perdera o papel e a palavra. Agora, teria de transportar o desgosto nos ombros. Esperar talvez que ele sucumbisse antes dela. Fora feliz ali, mas já não se lembrava quando. O inatingível tem cheiro - é nu, agonia e queima. Nunca mais vai a jogo, pensou. Nunca mais. A convicção é coisa que se desaprende. Como a fé, às vezes. Não sabia se habitava um cemitério de almas que ainda respiram se o contrário, uma espécie de sibilante orgia onde todos estavam já mortos. Invisíveis, em qualquer caso. E insignificantes. Há uma certa bizarria quando tudo na vida parece lugar comum excepto o lugar interior onde se está. Esquecera-se de fazer por pertencer ao mundo, era o que sentia.

quinta-feira, junho 16, 2011

Hugo Gonçalves: O rapaz secretário de Estado

Depois de tanto entrecosto em jantares comício e visitas a mercados e bandeiras a bater-lhe na cara, ele estava cada vez mais próximo. Tinha-se preparado ao longo dos anos, apertara a mão gosmenta de colegas de partido que, se pudessem, o punham a trabalhar numa portagem. Costumava dizer que a política é a arte de escapar das facas e, desde que iniciara a carreira na juventude partidária, mostrara-se mais esguio que uma enguia nas mãos de um doente de Alzheimer. Era detentor dessa capacidade de sobrevivência que vale muito mais que um canivete suíço: estava quase sempre no lado daqueles que venciam. Colava-se, amigava-se, dobrava-se em vénias. Não estava sozinho, passara por empresas, universidades e distritais do partido onde reconheceu os seus iguais, sósias que pareciam ventosas, gente agarrada com unhas e subserviência à sombra do líder, os campeões da espinha maleável e do sim senhor. E agora estava mais perto que nunca.

Um dia, desabafando com a mulher, confessou que se pusessem uma piscina de trampa entre si e o seu objectivo iria buscar as braçadeiras do filho e lançar-se-ia de cabeça. Mas passavam-se os dias e o telefone não tocava. Depois houve aquela confusão com os votos dos emigrantes no Brasil. Ligou ao pai, como fazia todos os dias, para explicar que havia procedimentos legais a cumprir, mas que já estaria no governo quando começassem as festas de Verão lá na terra. O número do líder nunca chegou a aparecer no seu telemóvel. Teve de ligar ao pai: "Não sou secretário de Estado." Nesse verão não apareceu nas festas da aldeia.

[Hoje, no i]

quarta-feira, junho 15, 2011

Foam Hands



True love regrets to inform you
there are certain things
you must do
to perceive his face
and the saints on the wall
Since you've been gone
Me and the King have been steadily growing apart
He lives down the hall
I'm not the kind to tell you what is true
And what is totally out of control
I didn't know what time it was at all
Foam Hands

segunda-feira, junho 13, 2011

domingo, junho 12, 2011

VIII

Só podemos captar a realidade,

as circunstâncias do tempo e do lugar,

se nos livrarmos da literatura de justificação

dos nostálgicos

da revolução perdida

que nos manipulam,

entre endireitas e canhotos.
Alexander Graham Bell

sábado, junho 11, 2011

Barney's version by Richard J. Lewis (*****)



Nomeado para o Leão de Ouro no 67º Festival Internacional de Veneza.
Paul Giamatti ganhou o Globo de Ouro.

sexta-feira, junho 10, 2011

António Barreto: "É quase impossível. Mas é possível"

Nada é novo. Nunca! Já lá estivemos, já o vivemos e já conhecemos. Uma crise financeira, a falência das contas públicas, a despesa pública e privada, ambas excessivas, o desequilíbrio da balança comercial, o descontrolo da actividade do Estado, o pedido de ajuda externa, a intervenção estrangeira, a crise política e a crispação estéril dos dirigentes partidários. Portugal já passou por isso tudo. E recuperou. O nosso país pode ultrapassar, mais uma vez, as dificuldades actuais. Não é seguro que o faça. Mas é possível.

Tudo é novo. Sempre! Uma crise internacional inédita, um mundo globalizado, uma moeda comum a várias nações, um assustador défice da produção nacional, um insuportável grau de endividamento e a mais elevada taxa de desemprego da história. São factos novos que, em simultâneo, tornam tudo mais difícil, mas também podem contribuir para novas soluções. Não é certo que o novo enquadramento internacional ajude a resolver as nossas insuficiências. Mas é possível.

Novo é também o facto de alguns políticos não terem dado o exemplo do sacrifício que impõem aos cidadãos. A indisponibilidade para falarem uns com os outros, para dialogar, para encontrar denominadores comuns e chegar a compromissos contrasta com a facilidade e o oportunismo com que pedem aos cidadãos esforços excepcionais e renúncias a que muitos se recusam. A crispação política é tal que se fica com a impressão de que há partidos intrusos, ideias subversivas e opiniões condenáveis. O nosso Estado democrático, tão pesado, mas ao mesmo tempo tão frágil, refém de interesses particulares, nomeadamente partidários, parece conviver mal com a liberdade. Ora, é bom recordar que, em geral, as democracias, não são derrotadas, destroem-se a si próprias!

Há momentos, na história de um país, em que se exige uma especial relação política e afectiva entre o povo e os seus dirigentes. Em que é indispensável uma particular sintonia entre os cidadãos e os seus governantes. Em que é fundamental que haja um entendimento de princípio entre trabalhadores e patrões. Sem esta comunidade de cooperação e sem esta consciência do interesse comum nada é possível, nem sequer a liberdade.

Vivemos um desses momentos. Tudo deve ser feito para que estas condições de sobrevivência, porque é disso que se trata, estejam ao nosso alcance. Sem encenação medíocre e vazia, os políticos têm de falar uns com os outros, como alguns já não o fazem há muito. Os políticos devem respeitar os empresários e os trabalhadores, o que muitos parecem ter esquecido há algum tempo. Os políticos devem exprimir-se com verdade, princípio moral fundador da liberdade, o que infelizmente tem sido pouco habitual. Os políticos devem dar provas de honestidade e de cordialidade, condições para uma sociedade decente.

Vivemos os resultados de uma grave crise internacional. Sem dúvida. O nosso povo sofre o que outros povos, quase todos, sofrem. Com a agravante de uma crise política e institucional europeia que fere mais os países mais frágeis, como o nosso. Sentimos também, indiscutivelmente, os efeitos de longos anos de vida despreocupada e ilusória. Pagamos a factura que a miragem da abundância nos legou. Amargamos as sequelas de erros antigos que tornaram a economia portuguesa pouco competitiva e escassamente inovadora. Mas também sofremos as consequências da imprevidência das autoridades. Eis por que o apuramento de responsabilidades é indispensável, a fim de evitar novos erros.

Ao longo dos últimos meses, vivemos acontecimentos extraordinários que deixaram na população marcas de ansiedade. Uma sucessão de factos e decisões criou uma vaga de perplexidade. Há poucos dias, o povo falou. Fez a sua parte. Aos políticos cabe agora fazer a sua. Compete-lhes interpretar, não aproveitar. Exige-se-lhes que interpretem não só a expressão eleitoral do nosso povo, mas também e sobretudo os seus sentimentos e as suas aspirações. Pede-se-lhes que sejam capazes, como não o foram até agora, de dialogar e discutir entre si e de informar a população com verdade. Compete-lhes estabelecer objectivos, firmar um pacto com a sociedade, estimular o reconhecimento dos cidadãos nos seus dirigentes e orientar as energias necessárias à recuperação económica e à saúde financeira. Espera-se deles que saibam traduzir em razões públicas e conhecidas os objectivos das suas políticas. Deseja-se que percebam que vivemos um desses raros momentos históricos de aflição e de ansiedade colectiva em que é preciso estabelecer uma relação especial entre cidadãos e governantes. Os Portugueses, idosos e jovens, homens e mulheres, ricos e pobres, merecem ser tratados como cidadãos livres. Não apenas como contribuintes inesgotáveis ou eleitores resignados.

É muito difícil, ao mesmo tempo, sanear as contas públicas, investir na economia e salvaguardar o Estado de protecção social. É quase impossível. Mas é possível. É muito difícil, em momentos de penúria, acudir à prioridade nacional, a reorganização da Justiça, e fazer com que os Juízes julguem prontamente, com independência, mas em obediência ao povo soberano e no respeito pelos cidadãos. É difícil. Mas é possível.

O esforço que é hoje pedido aos Portugueses é talvez ímpar na nossa história, pelo menos no último século. Por isso são necessários meios excepcionais que permitam que os cidadãos, em liberdade, saibam para quê e para quem trabalham. Sem respeito pelos empresários e pelos trabalhadores, não há saída nem solução. E sem participação dos cidadãos, nomeadamente das gerações mais novas, o esforço da comunidade nacional será inútil.

É muito difícil atrair os jovens à participação cívica e à vida política. É quase impossível. Mas é possível. Se os mais velhos perceberem que de nada serve intoxicar a juventude com as cartilhas habituais, nem acreditar que a escola a mudará, nem ainda pensar que uma imaginária "reforma de mentalidades" se encarregará disso. Se os dirigentes nacionais perceberem que são eles que estão errados, não as jovens gerações, às quais faltam oportunidades e horizontes. Se entenderem que o seu sistema político é obsoleto, que o seu sistema eleitoral é absurdo e que os seus métodos de representação estão caducos.

Como disse um grande jurista, “cada geração tem o direito de rever a Constituição”. As jovens gerações têm esse direito. Não é verdade que tudo dependa da Constituição. Nem que a sua revisão seja solução para a maior parte das nossas dificuldades. Mas a adequação, à sociedade presente, desta Constituição anacrónica, barroca e excessivamente programática afigura-se indispensável. Se tantos a invocam, se tantos a ela se referem, se tantos dela se queixam, é porque realmente está desajustada e corre o risco de ser factor de afastamento e de divisão. Ou então é letra morta, triste consolação. Uma nova Constituição, ou uma Constituição renovada, implica um novo sistema eleitoral, com o qual se estabeleçam condições de confiança, de lealdade e de responsabilidade, hoje pouco frequentes na nossa vida política. Uma nova Constituição implica um reexame das relações entre os grandes órgãos de soberania, actualmente de muito confusa configuração. Uma Constituição renovada permitirá pôr termo à permanente ameaça de governos minoritários e de Parlamentos instáveis. Uma Constituição renovada será ainda, finalmente, o ponto de partida para uma profunda reforma da Justiça portuguesa, que é actualmente uma das fontes de perigos maiores para a democracia. A liberdade necessita de Justiça, tanto quanto de eleições.

Pobre país moreno e emigrante, poderás sair desta crise se souberes exigir dos teus dirigentes que falem verdade ao povo, não escondam os factos e a realidade, cumpram a sua palavra e não se percam em demagogia!

País europeu e antiquíssimo, serás capaz de te organizar para o futuro se trabalhares e fizeres sacrifícios, mas só se exigires que os teus dirigentes políticos, sociais e económicos façam o mesmo, trabalhem para o bem comum, falem uns com os outros, se entendam sobre o essencial e não tenham sempre à cabeça das prioridades os seus grupos e os seus adeptos.

País perene e errante, que viveste na Europa e fora dela, mas que à Europa regressaste, tens de te preparar para viver com metas difíceis de alcançar, apesar de assinadas pelo Estado e por três partidos, mas tens de evitar que a isso te obrigue um governo de fora. País do sol e do Sul, tens de aprender a trabalhar melhor e a pensar mais nos teus filhos.País desigual e contraditório, tens diante de ti a mais difícil das tarefas, a de conciliar a eficiência com a equidade, sem o que perderás a tua humanidade. Tarefa difícil. Mas possível.

Discurso de António Barreto, Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

quinta-feira, junho 09, 2011

Everybody dies but me by Valeriya Gay Germanika (****)


Menção especial no 61º Festival de Cannes.

quarta-feira, junho 08, 2011

Ivan Turgueniev: Primeiro amor


Oh, juventude, juventude! Não te preocupes com nada, parece que todos os tesouros do universo te pertencem, a própria tristeza te é aprazível, a própria angústia te fica bem, és convencida e atrevida, dizes: só eu vivo, olhai... mas os dias correm e desaparecem sem deixar rasto, perdendo-se-lhes a conta, e tudo o que tinhas desaparece como a cera ao sol, como a neve... E talvez o enigma do teu encanto não seja o de conseguires tudo mas a possibilidade de pensares que consegues tudo - consiste precisamente em lançares ao vento as forças que não saberias aproveitar; consiste em que cada um de nós se considera, sem ironia, um esbanjador de tempo, e acha, a sério, que tem todo o direito de dizer: oh, o que eu conseguiria se não tivesse perdido tempo em vão!
Também eu... em que depositava as minhas esperanças, que futuro rico previa para mim quando me limitei a despedir-me com um suspiro, com uma triste sensação, do fantasma efémero e momentâneo do meu primeiro amor?

terça-feira, junho 07, 2011

Rui Tavares: Período de reflexão

Não tenho ilusões. Ontem acabou de se confirmar uma viragem histórica em Portugal, e eu estou do lado perdedor. O país chegou a estas eleições exangue e entregue às mãos impiedosas da troika. Simbolicamente, bateu já no fundo, ou pensa que bateu — a julgar pelo exemplo da Grécia e da Irlanda, este fundo não tem fundo. Socialmente, aproximam-se tempos duríssimos; politicamente, a descrença vai ser amplificada pelos sucessivos falhanços em chegar às metas do memorando; culturalmente, no sentido mais profundo, Portugal vai esvair-se. Esvair-se em crença num futuro desenvolvido, europeu e próspero. E esvair-se em gente que ainda tenha sonhos.

Desculpem, quem está do lado perdedor deveria começar por falar dos vencedores. O PSD e o CDS ganharam legitimamente, sob a bancarrota em ameaça no campo financeiro, e sobre a bancarrota da esquerda portuguesa — já lá iremos. Mas o PSD e o CDS têm nas mãos um bem precioso, poder para governar, e não tenham dúvidas de que saberão usá-lo. A direita portuguesa sabe sempre convergir para governar; e, com a exceção de Santana Lopes, sabe sempre governar para ficar no governo.

Costuma dizer-se que nunca se deve desperdiçar uma boa crise. Todo o político que é político sabe, nos seus ossos, que assim é. Pedro Passos Coelho e Paulo Portas são políticos — praticamente nunca foram outra coisa. Não desperdiçarão esta crise. Usa-la-ão para cumprir com o seu programa político até ao fim. Jogarão sempre as culpas de todas as dificuldades no passado, e isso bastará nos primeiros anos. E quando chegar o fim do mandato usarão a folga que entretanto houver para ganhar novas eleições. Essas eleições só as perderão se forem inábeis.

Teremos governo de direita, com um programa que fará o cavaquismo parecer um oásis social, e para durar oito anos.

Nada pode escamotear a dimensão desta derrota para a esquerda portuguesa. Após anos em que teve uma sólida maioria sociológica no país, e após uma crise do capitalismo que lhe deu, temporariamente, uma hegemonia no discurso, com uma esquerda radical que tinha a maior proporção de votos da Europa, deixamos (eu incluo-me neste “nós”) o país nas mãos do FMI, do PSD mais neoliberal de sempre, e do CDS de Paulo Portas com o dobro dos votos do BE e do PCP. Não há ninguém de esquerda que possa olhar para este panorama e ficar satisfeito. O discurso de “estivemos onde tínhamos de estar” e “estaremos onde tivermos de estar” é absolutamente inadequado para uma ocasião destas. Onde está a reflexão que permite saber onde se situa esse “onde”?

Nós à esquerda temos uma análise impecável desta crise. Impecável até demais. Sabemos onde falhou o sistema financeiro. Sabemos onde falhou o neoliberalismo. Sabemos onde falhou o centro-direita, e o centro-esquerda, e a social-democracia. Sabemos tudo, é fantástico. Só não sabemos responder a esta pergunta: onde falhámos nós? Sim, porque nós havemos de ter falhado em qualquer coisa. Se não tivéssemos falhado, não teríamos a troika a tomar conta da casa. Se não tivéssemos falhado, não teríamos, dois anos depois de os bancos terem estourado com o sistema financeiro, o discurso hegemónico a estourar com o estado social em favor da mítica austeridade.

A esquerda não será séria se achar que fez tudo bem e que, para o futuro, só há que continuar a fazer o mesmo. Para a esquerda, o tempo está virado do avesso. O dia das eleições foi ontem. O dia da reflexão só agora começou.

[Ontem, no Público]

Lenha para queimar obsessões (VI)

segunda-feira, junho 06, 2011

The day after

José Sócrates não merecia o magro resultado de ontem como também não mereceu a maioria absoluta de 2005. Em Portugal, não se vota na competência de um; vota-se na exclusão do outro. A maioria socialista foi a chave para cessar os nove meses de ensaio de Santana Lopes; a tangente absoluta de Passos Coelho a forma de punir Sócrates por seis anos de governação que nem sequer cabem todos dentro do mesmo adjectivo. Não foi tudo mau; não foi tudo bom. Mas, em Portugal, a melhor forma de ganhar eleições é chegar de novo e, de preferência, do nada. Foi esse, quer ele e o eleitorado tenham disso consciência ou não, o truque de Passos Coelho. Chegou de novo (zero de experiência governativa, muito pouco de vida partidária pública) e do nada (alguém, do país mais profundo ao mais urbano, saberá quem é o empregador Ângelo Correia?) - e os portugueses adoram isso. Adoram o vizinho novo do lado. Todos os vizinhos velhos já foram novos um dia. Os novos pelo menos ainda não meteram a música a tocar aos berros a meio da noite. A lógica, primária, é esta. Se assim não fosse, Manuela Ferreira Leite teria vencido as legislativas em 2009.

O PS mereceu perder ontem, já começava a merecer em 2009. Mas o PSD não mereceu ganhar ontem, mereceu-o talvez em 2009. E não ganhou por responsabilidade do próprio partido, para quem aquela senhora talvez não viesse muito a propósito. Meter o país na ordem ainda vá que não vá; meter o partido em sentido é que já não lhes dava jeito nenhum. Este PSD, entre preteridos e auto-excluídos, é um partido com os restos do anterior, como um almoço cozinhado com o que sobrou do jantar de véspera. É necessariamente mau? Não, mas a incógnita não é definitivamente o porto seguro de que o país precisava.

Não acredito que o país tenha escolhido virar à direita. Não tenho sequer a certeza de que a esmagadora maioria do país saiba o que está realmente em causa, sobretudo quando o ouço dizer, a propósito de Passos Coelho, "ele para ganhar tem que vir dançar com o povo", ou a propósito de Sócrates, "você é um charme". Isto é o país real, isto é o país que vota, que escolhe de entre o pouco e o fraco que lhe dão a escolher. E isto não muda com eleições. Os políticos sabem-no, jogam, ajustam-se, cantam, trocam chapéus e beijos, o que for preciso, até o pino. E isto sim, deveria incomodar Cavaco Silva. Quem vota em branco está a dizer muito mais do que quem vota em quem dança ou canta, mas disso ninguém nunca quer saber. Nem o PR. Aliás, para o PR devem ficar calados. Enquanto assim for, enquanto o povo não aprender a destrinçar o pão do circo, a escandalosa fuga de Durão Barroso vai valer o mesmo que a de António Guterres; a derrota de Santana o mesmo que a de Sócrates. O mesmo para as vitórias. E vamos sempre andar nisto às voltas. Sempre sísifos.

Talvez alguém acredite que a partir de agora o país vai subitamente melhorar, ou, como já ouvi, a crise acabar, Portugal crescer e ninguém, a menos que absolutamente o deseje, terá de emigrar para trabalhar. Eu, infelizmente, continuo a achar que estamos condenados. Antes de tudo, a ter uma classe política medíocre, antes de tudo porque não exige de si o que o país não sabe. O resto vem por arrasto.

sábado, junho 04, 2011

High

VII

"Sobreviver é pior do que a vida."
Camille Boitel, Ípsilon

sexta-feira, junho 03, 2011

Manifesto Sumol


A Diesel apelava à estupidez. A Sumol à originalidade. E agora à coragem. A publicidade sempre a acender a luz e a maioria a querer apagá-la.



Manifesto I (2010)
Um dia, o mais provável é tornares-te num chato, deixares de sair à noite e começares a levar-te demasiado a sério. Nesse dia, vais começar a vestir cinzento e beje, pedir para baixar o volume da música e deixar a tua guitarra a apanhar pó. Vais tornar-te politicamente correcto, socialmente evoluído, economicamente consciente. Vais achar que tens de ir para onde toda a gente vai e assumir que tens de usar fato e gravata todos os dias. Nesse dia, vais deixar de beijar em público, as tuas viagens serão mais vezes no sofá e dormirás menos ao relento. É oficial. Vais entrar na idade do chinelo e deixar de ser quem foste até então. Vais deixar de te sentar ao colo dos amigos, e vais esquecer-te de como de faz um quantos-queres ou um barco de papel. Vais ficar nervosinho se não trocares de carro de quatro em quatro anos e desatinar se o hotel onde estiveres não te der toalhas para o teu macio e hidratado rosto. Vais tornar-te muito crescido e começar a preocupar-te com tudo e com nada e a não fazer nada porque "vai-se andando" e a vida é mesmo assim. Vais dizer não mais vezes, vais ter mais medo, vais achar que não podes, que não deves, que tens vergonha. Vais ser mais triste. Nesse dia, o mais provável é que também deixes de beber refrigerantes. Aqui fica uma ideia: quando esse dia chegar, não lhe fales.

Manifesto II (2011)
Pratica a coragem. Sem medo. Sem te desviares um milímetro que seja de quem és. Não te acanhes, não te rebaixes, não fiques com nada por dizer. És mais bravo do que pensas e o teu corpo mais resistente do que imaginas. Segue. Vai contigo. Conta com aquilo que tens. Ouve o bichinho que diz esquerda quando toda a gente vai para a direita, (esse bichinho és tu, não o pises). Pratica a intuição, vai mais vezes, erra as vezes que precisas. Dorme descansado. Tu não és mais ninguém, nunca o serás. Por mais que te gritem o contrário, tu és. Ponto. Por isso, pratica o que tens. Pratica o que só em ti existe e é raro nos outros. Pratica o desplante, a candura, o despropósito e o magnânime. Pratica o estrambólico, o arrumadinho e o absurdo. Pratica quem és. Só assim te manterás original. 

quinta-feira, junho 02, 2011

VI

"A gente está sempre a tropeçar,
 mesmo quando o caminho é liso,
é assim o destino humano:
quando não nos enganamos no essencial,
enganamo-nos nos pormenores.
Ninguém conhece a verdadeira verdade."

5 de Junho

Um desgosto político dói mais do que um desgosto de amor. Um amor não correspondido é um amor que não foi, que não se chegou a saber como seria, não deixa mágoa, deixará pena, não se escolhe quem se ama, é assim. Um amor que falhou é uma responsabilidade partilhada ou uma desilusão de que cedo ou tarde se recupera, não inviabiliza o futuro, a ferida sara. Por muito que às vezes não se queira e até se deseje o contrário. Morrer de amor. Ninguém morre. Um desgosto político é diferente. A começar pelo facto de ser colectivo. A piorar pelo facto de o ser em duas acepções: não só é uma extensa colecção de traições - ao passado, ao presente, ao futuro, às crenças, aos ideais, ao que se fez, ao que se não fez, ao que se disse, ao que se calou, ao que se pensou, ao que se contaminou -, como uma traição de impacto atómico, suficientemente rápida e com energia bastante para ameaçar ou mesmo destruir uma geração inteira. Ou várias. Não é coisa de um coração só. E não são só os sonhos, mas também o que dos sonhos foi suor. E destruir o suor dos sonhos é demasiado grave para não ser considerado crime. Em qualquer cenário. Sempre achei isto. Mas o pior de tudo é que no desgosto político é tão culpado quem traiu como quem acreditou. A única diferença é que seguramente dói mais a quem acreditou, o que longe de atenuar, só agrava.

Há uma geração, que é a minha, que nasceu com direito de voto adquirido. Direito a votar rimava com dever de escolher. Mas também, na educação que me deram, com direito a esperar a honra da palavra dada. Votar numa palavra de honra era um compromisso de mimetismo à escala. Voto em X porque à minha escala defendo e farei o que X defende e fará. Voto em X porque, de forma simples e sintetizada, X poderá errar mas nunca enganar, poderá não salvar o mundo mas tudo fará para o melhorar. Votar em X era adquirir a mais confortável de todas as almofadas: a crença destemida em alguém que, no mínimo, nunca faria nada que pudesse excluir, envergonhar ou prejudicar alguém. X simbolizava orgulho e identificação, colocar no fogo as mãos sem medo de as queimar. Não era coisa de heróis, só de gente honesta. A responsabilidade exigível a X era igual à responsabilidade que me era exigida. Tal e qual como no amor, a escolha política significava reciprocidade -  receber na medida do que se dá - e um esforço em cadeia - dar mais a quem tem menos - em nome do bem comum. E não era uma escolha entre X e Y na medida em que X era bom e Y era mau. Era uma escolha entre bons e bons no sentido que todos queriam mais ou menos o mesmo, mas através de caminhos diferentes.

Acreditar em alguém parecia normal, era normal. Hoje parece a maior demonstração de ingenuidade, se não mesmo de estupidez. E não só na política. Pergunto-me até que ponto a versão que me venderam num dia que parece já ter sido na outra vida algum dia existiu. E até que ponto vale a pena ser educado para a honestidade, a solidariedade, o conhecimento e por aí fora quando o preço a pagar é infinitamente mais caro do que o seu contrário. E pergunto-me quanto tempo demorará a conseguirmos desembaraçar-nos desta ideia que antes parecia significar dignidade e hoje não é senão tonteria. Mas pergunto-me também se algum político antes de o ser terá de si a consciência de que não é suficientemente honesto ou competente ou incorruptível para desempenhar a função. Ou se tem realmente consciência dos estragos que tem o poder de provocar em quem não tem como defender-se. Pergunto-me como dorme quem tira o sono aos outros. Mesmo. E pergunto-me sobretudo se algum dia voltará a ser possível querer e crer no bem alheio e esperar a tal honra da palavra dada sem se parecer um palerma. Um desgosto de amor colhe a solidariedade de multidões, pode ser exibido e dirimido em público; um desgosto político embaraça e isola. É como ter cometido um crime a dormir; assume-se a culpa por incapacidade de o negar, mas sem recordar o momento exacto da acção. 

Nunca votei em branco, feliz que cresci com a ideia de poder e dever contribuir para uma democracia que nos enriquecia e libertava. Não sei se algum dia voltarei a votar em alguém, sequer a sair de casa com o propósito de votar. Muito menos votarei numa altura em que a corrente diz que o importante não é escolher X; é não escolher Y. Como se tivéssemos um cancro cheio de metástases e o médico dissesse: não a vou curar, vou só tirar-lhe este tumor, que é o mais visível. Tirando-me esse, senhor doutor, vou viver mais tempo, viver melhor? Não, vai viver o mesmo tempo e na mesma mal. Pode ao menos garantir-me que ele não vai voltar a crescer? Também não. Garantir que os outros tumores são menos graves? Também não, que ainda não os analisei. Então, senhor doutor, qual é a ideia? 

Qual é a ideia?, pergunto. 
 
Alguém, já não sei quem, escreveu há umas semanas: "ando com o meu voto na mão e não tenho a quem o entregar". É isso. E é uma grande tristeza. Não se pode viver bem quando não se acredita em ninguém.

quarta-feira, junho 01, 2011

Anton Tchékov: O Duelo


As ciências humanas de que fala apenas irão satisfazer o pensamento humano quando, no seu movimento, se encontrarem com as ciências exactas e seguirem a par delas. Se se vão encontrar nas lamelas do microscópio, ou nos monólogos de um novo Hamlet, ou numa nova religião, isso não sei, mas acho que a Terra se cobrirá de uma casca de gelo antes de isso acontecer. O mais resistente e sobrevivente de todos os conhecimentos humanos é, sem dúvida, a doutrina de Cristo, mas veja que é variado o entendimento até desta doutrina! Alguns pegam que amemos o próximo, mas excluem desse amor os soldados, os criminosos e os loucos: aos primeiros é permitido matá-los na guerra, aos segundos isolá-los ou executá-los, aos terceiros é proibido casar-se. Outros intérpretes ensinam a amar sem discriminação, sem se olhar para as qualidades ou defeitos de cada qual. De acordo com estes, se chegar a nossa casa um tísico ou um assassino, ou um epiléptico, e se pedir a nossa filha em casamento, deve-se dar-lha; se os cretinos moverem guerra contra as pessoas física e mentalmente saudáveis, estas devem expor-lhes as cabeças. Esta prédica do amor pelo amor, como da arte pela arte, se singrasse acabaria por levar a humanidade à extinção completa, e assim se consumaria o mais grandioso de todos os crimes alguma vez existentes à face da Terra. Há muitíssimas interpretações, mas, por muitas que sejam, o pensamento sério não se satisfaz com nenhuma delas e apressa-se a acrescentar às numerosas interpretações a sua própria. Por isso, nunca coloque um problema na base filosófica ou na base dita cristã, porque dessa maneira ainda fica mais longe da solução do problema.